Folha de S. Paulo


Com jeans e polo, neonazistas dos EUA tentam criar uma imagem aceitável

Alejandro Alvarez-11.ago.2017/Reuters
Supremacistas brancos carregam tochas no entorno da Universidade da Virginia no dia 11 de agosto, na véspera do protesto de grupos de extrema direita que terminou com a morte de uma militante antirracismo
Supremacistas brancos carregam tochas no entorno da Universidade da Virginia no dia 11 de agosto, na véspera do protesto de grupos de extrema direita que terminou com morte de militante antirracismo

A moda foi transformada em arma. E o setor de moda vem mantendo silêncio sobre isso.

Nos dias transcorridos desde que os nacionalistas brancos [white nationalists] marcharam em Charlottesville, na Virgínia, e que o presidente Donald Trump afirmou que algumas "pessoas ótimas" estavam marchando com eles, presidentes de grandes empresas divulgaram comunicados de protesto e se demitiram de seus postos em conselhos consultivos da Casa Branca.

Artistas deixaram o Comitê de Artes e Ciências Humanas da Casa Branca e três dos cinco laureados com o Prêmio Kennedy deste ano anunciaram que talvez faltassem à tradicional recepção aos premiados que a Casa Branca organiza anualmente, o que levou o presidente e a primeira-dama a cancelarem o evento.

Legisladores contradisseram as declarações do presidente, apresentadores de talk-shows o satirizaram e atores e atletas importantes demonstraram sua indignação.

Mas o setor de moda pouco disse.

O Instagram, que serve como palanque favorito do setor, continua dominado por campanhas publicitárias, coleções de outono e fotos de férias. Soterrados em fotos gloriosas de sapatos e bolsas, alguns poucos estilistas arriscaram postar comentários sobre o amor. A Barneys New York citou Martin Luther King. O estadista escolhido por Diane von Furstenberg foi Nelson Mandela, via o ex-presidente Barack Obama.

Mas raros estilistas e designers, por exemplo Jeffrey Banks e Kerby Jean Raymond, mencionaram o presidente ou falaram diretamente da questão do nacionalismo branco.

Notavelmente, não houve pronunciamento formal da principal organização setorial da moda, o Council of Fashion Designers of America (CFDA, conselho dos designers de moda dos Estados Unidos).

"Jamais consideramos a hipótese de divulgar uma declaração em resposta direta a Charlottesville", disse Steven Kolb, presidente do CFDA, em e-mail. "Mantemos nosso compromisso com a responsabilidade cívica e anunciaremos novidades em uma campanha para a semana de moda que começamos a planejar semanas atrás... e tratará disso."

Nem todos os setores precisam fazer declarações públicas sobre tudo o que se torna assunto no ciclo noticioso. E não é como se o público estivesse esperando ansiosamente pelas opinião de Michael Kors ou da J. Crew sobre o que aconteceu em Charlottesville.

Mas, ainda assim, o setor de moda é ancorado por grandes empresas de capital aberto, cuja influência cultural é tão grande quanto a de qualquer ator ou atleta. Muitas marcas de moda criaram seus negócios com base no mítico cadinho de raças do sonho americano.

A moda tem dívida especialmente grande com as comunidades que são alvo dos supremacistas brancos. Estilistas buscam regularmente inspiração artística nas comunidades étnicas minoritárias. Alguns dos primeiros e mais influentes comerciantes e editores de moda eram judeus. E o setor se beneficiou imensamente da criatividade e engenhosidade de pessoas que se identificam como LGBT.

Por que a moda não se pronunciaria? Especialmente agora que ela se tornou uma arma camuflada para nacionalistas brancos. Os neonazistas estão explorando a capacidade da moda para camuflar, distrair, ousar, reassegurar, lisonjear e, simplesmente, mentir.

FIGURINO

Em muitas das imagens registradas em Charlottesville, os manifestantes racistas usam camisas polo brancas e calças cáqui. Outros usam jeans lisos, camisas sociais, bermudas com bolsos largos. Eles usam jeans e pulôveres listrados que poderiam ter sido comprados na estante de descontos de uma loja Gap local.

Algumas das roupas portam marcas específicas: camisas de golfe Fred Perry, por exemplo. A Fred Perry, assim como a New Balance havia feito anteriormente, divulgou um comunicado criticando os supremacistas brancos que declararam apreço por seus produtos.

Mas a relevância da moda no diálogo sobre o ódio racial vai bem além de qualquer marca específica. Para um observador informado sobre os símbolos internos e a linguagem visual dos nacionalistas brancos, havia muito a ler: neonazistas, Proud Boys, skinheads, direita alternativa. Para os desinformados, no entanto, seu estilo de vestir não atraía atenção. Não se tratava de uma multidão usando capuzes e mantos brancos.

Os manifestantes reconheceram o poder visual da moda e o adotaram. Mais de um jovem recruta, ao dar seus primeiros passos no nacionalismo branco, relatou seu prazer –e alívio– diante da aparência normal de seus colegas em uma conspiração de ódio. Eles se parecem com qualquer outro jovem na faixa dos 20 ou 30 anos, com cortes de cabelo curtos nas laterais e longos no topo, ternos justos, bonés de beisebol, casacos com capuz.

A moda sempre ajudou as pessoas a criarem a persona pública que preferem. O exterior pode ter muito pouco em comum com o que a pessoa porta no coração ou na mente –ou com aquilo que ela diz nas sombras ou por trás de portas fechadas. A aparência representa simplesmente sua narrativa pública. No passado, mulheres adotaram o visual "power suit" [terninho/tailleur poderoso, em tradução livre] para facilitar um pouco sua navegação no mundo dos negócios dominado pelos homens.

As comunidades desprivilegiadas usaram a moda para atrair a atenção da mídia e amplificar suas vozes. O pleno potencial de uma moda neutra em termos de gênero e a maneira pela qual ela vem dando forma à nossa compreensão da sexualidade é algo que ainda não foi devidamente medido.

A glória da moda está em sua capacidade de nos fazer sentir incluídos. E ao estarmos incluídos, passamos a importar.

Os nacionalistas brancos caminham pelas comunidades envoltos na mais mundana e banal das modas. Roupas que não atraem um segundo olhar. Roupas aceitáveis e apropriadas. Roupas que os fazem parecer incluídos.

E o setor de moda ainda não lhes disse que não, eles não estão incluídos.

ROBIN GIVHAN é crítica de moda do "Washington Post", cobrindo moda como negócio, como instituição e como puro prazer.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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