Folha de S. Paulo


Recordes de Bolt virarão pó quando engenharia genética chegar ao esporte

Fabrizio Bensch - 19.ago.2016/Reuters
Usain Bolt na final dos 100 m rasos dos Jogos Olímpicos do Rio
Usain Bolt na final dos 100 m rasos dos Jogos Olímpicos do Rio

RESUMO Usain Bolt é um caso raro de esportista fora da curva genética, de atleta que supera os demais, inclusive os que usam doping, e leva os recordes além do que parecia possível. Ainda assim, não chegamos perto do limite, e a engenharia genética pode fazer com que os futuros Bolts dependam menos do acaso.

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Vivi por muitos anos em Eugene, Oregon, cidade americana com longa tradição no atletismo. Competições de destaque atraem atletas de alto nível ao estádio da universidade local. Era empolgante encontrá-los. Certa manhã, fiquei chocado quando uma mulher que treinava séries de 400 metros me ultrapassou como se eu estivesse parado.

Ela era uma atleta de ponta, e eu não. O desempenho atlético segue uma distribuição estatística normal, como muitas outras quantidades na natureza. Ou seja, o número de pessoas capazes de atuações excepcionais cai exponencialmente na medida em que o nível aumenta.

Por exemplo, correr 100 metros rasos em 11 segundos pode valer a vitória para um aluno de ensino médio num campeonato local, mas um campeão estadual fará a distância em menos de 11 segundos –e, dentre cem campeões estaduais, apenas alguns poucos conseguirão tempos próximos de dez segundos.

Se você continuar acompanhado essa curva, encontrará as exceções entre as exceções, competidores que levam os limites para além do que imaginávamos possível.

Quando Carl Lewis dominava provas de atletismo, nos anos 1980, tempos abaixo de 10 segundos eram raros nos 100 metros rasos.

Com 1,89 m e esbelto, Lewis era considerado alto para um velocista. Alturas superiores à dele eram consideradas desvantagem, pois forçavam uma cadência mais lenta e velocidade menor –ao menos essa era a opinião prevalente.

Daí por que ninguém conseguiu prever a chegada de Usain Bolt. Com 1,98 m, musculoso e com tempo de prova quase meio segundo melhor que o dos atletas da geração anterior, ele parece de outra espécie. Sua passada atinge notáveis 2,8 metros e, de acordo com estudo publicado em 2013 no "European Journal of Physics", seu desempenho "é de interesse da física, por atingir velocidades que, até agora, nenhum outro corredor consegue igualar".

Os tempos de Bolt não eram só melhores que os de qualquer outro atleta. Eram muito melhores até do que os de um atleta de primeira classe da geração precedente que correu dopado. Ben Johnson estabeleceu o recorde de 9,79 segundos para os 100 metros rasos na Olimpíada de 1988, superando Lewis. Mais tarde, descobriu-se que ele usara anabolizantes.

Final dos 100 m rasos na Olimpíada de Seul, em 1988; a prova foi vencida pelo atleta americano Ben Johnson

SUPER-HOMENS

Mas nem a combinação entre um atleta de elite e anabolizantes supera um esportista fora da curva em termos genéticos. Bolt estabeleceu um novo recorde mundial de 9,58 segundos para os 100 metros rasos em 2009.

Há uma história parecida na NBA, com Shaquille O'Neal. Ele foi o primeiro jogador com mais de 2,13 metros na liga de basquete dos EUA a manter a força e a agilidade de um homem muito menor. A meio caminho entre um varapau e um brutamontes, seu corpo seria o de uma pessoa atlética com cerca de 90 kg se ele medisse 1,83 m.

Veja dez grandes jogadas de Shaquille O'Neal

Quando ele recebia a bola perto da cesta, não havia jogador (às vezes, nem dois jogadores) que conseguisse impedir uma enterrada. Depois que o Los Angeles Lakers venceu três títulos consecutivos, a NBA mudou as regras a fim de reduzir o domínio de Shaq.

Foi mais um caso de pessoa fora da curva em termos genéticos cujo desempenho não encontrava rivais mesmo em uma liga que vinha sendo criticada por sua leniência com o doping. Mas não importava que tipo de doping estivesse em uso, isso não bastava para elevar ninguém ao patamar de Shaq.

A melhora que pode ser obtida por meio de doping é relativamente modesta. Mike Israetel, professor da Universidade Temple, estimou que, no halterofilismo, drogas elevem de 5% a 10% o resultado de um atleta. Basta comparar com o avanço do recorde mundial de peso no supino: 163,8 kg em 1898, 227 kg em 1953 e 331,4 kg em 2015.

O doping pode bastar para permitir vitória em uma dada competição, mas não se compara à tendência de melhora de desempenho em longo prazo, que é impulsionada em parte por atletas fora da curva em termos genéticos.

Com o crescimento da população de halterofilistas, surgiram cada vez mais exemplares que estão fora da curva normal de distribuição, em termos genéticos, e são eles que criam novos recordes.

Da mesma forma, a vitória de Lance Armstrong com a ajuda do doping na Volta da França de 1999 foi conquistada com sete minutos e 27 segundos de vantagem sobre o segundo colocado, Alex Zülle, ou seja, uma vantagem de 0,1%. Em 1971, Eddy Merckx venceu com tempo 5% abaixo do de Zülle.

Com certeza, parcela dessa evolução se deve aos avanços nos métodos de treinamento e à melhora do equipamento. Mas boa parte do progresso se deve simplesmente à capacidade do esporte de encontrar competidores de natureza cada vez mais excepcional, e cada vez mais distanciados da norma na distribuição estatística padrão.

Mal arranhamos a superfície do que os atletas fora da curva genética serão capazes de fazer.

A distribuição normal de capacidades atléticas que vemos representa uma assinatura reveladora de muitos efeitos aditivos de pequeno porte, independentes uns dos outros. Esses efeitos provêm de variantes de genes, ou alelos, com pequenas consequências positivas e negativas para traços como altura, musculatura e coordenação.

Sabe-se, por exemplo, que uma grande altura deriva de uma combinação de número elevado de variantes positivas e, talvez, de algumas mutações muito raras que produzem efeito por si sós.

SOB ENCOMENDA

O pesquisador George Church participou de um dos maiores avanços científicos das últimas décadas: o desenvolvimento de uma ferramenta altamente eficiente de edição de genes chamada Crispr, que foi licenciada para testes clínicos em aplicações médicas. Se as tecnologias relacionadas à Crispr avançarem da forma prevista, seres humanos produzidos por encomenda estão a poucas décadas de distância.

Dado que traços complexos são controlados por muitas variantes, sabemos que existe um imenso potencial inexplorado que nenhum ser humano –nem Shaq ou Bolt– chegou perto de exaurir. Nenhum ser humano chegou perto de ter todas as versões positivas das variações genéticas relevantes.

Toda a empreitada do atletismo de alto nível representa não mais que um algoritmo para a busca de pessoas fora da curva em termos genéticos, mas essa busca está em operação há menos de um século e não se provou muito eficiente. A abordagem adotada tem sido a de esperar passivamente que recombinações aleatórias produzam essas variantes e supor que os programas de atletismo venham a identificar os melhores indivíduos.

Agora, estamos entrando em uma era na qual não será mais o acaso que configurará o DNA, mas sim o intelecto humano, por meio de ferramentas que ele criou.

Conforme melhorar a nossa compreensão sobre traços complexos, os engenheiros genéticos serão capazes de modificar força, tamanho, explosão, durabilidade, velocidade e até mesmo o ímpeto necessário para treinar.

Estima-se que chegue a 10 mil o total de variantes que controlam a altura e a capacidade cognitiva, dois dos traços mais complexos. Se, para simplificar, presumirmos que em cada um desses 10 mil casos a variante favorável esteja presente em metade da população, a probabilidade de que combinações aleatórias produzam um exemplo "máximo" de indivíduo fora da curva é de cerca de 2-18 [para comparar: a chance de, por acaso, alguém encontrar um grão de areia específico na Terra é de 10-18].

É claro que pode não ser possível contar com as 10 mil variantes favoráveis ao mesmo tempo, devido a efeitos debilitantes, como excesso de musculatura ou presença de um coração forte demais. Mesmo assim, é quase certo que existirão indivíduos viáveis com um nível de capacidade superior ao que qualquer pessoa jamais teve.

Em outras palavras, é altamente improvável que tenhamos chegado perto do máximo desempenho possível nos 100 bilhões [o número 100 seguido de nove zeros] de seres humanos que viveram até hoje. (Uma busca completamente aleatória demandaria a produção de cerca de 10100 [o número 100 seguido de 99 zeros] indivíduos diferentes!)

ADEUS, ACASO

Devemos ser capazes de acelerar essa busca por meio da engenharia. Com vacas e galinhas, numa espécie de seleção natural dirigida, não houve dificuldade para criar animais cuja presença na população natural seria de 1 em 1 bilhão.

A produção seletiva de pés de milho escolhidos com base no teor de óleo dos grãos elevou sua presença por cerca de 30 desvios padrão em cerca de cem gerações. Um feito comparável a encontrar o tipo humano máximo para uma determinada modalidade esportiva.

Técnicas de edição direta como o Crispr podem nos levar até lá ainda mais depressa, criando Bolts mais velozes que Bolt e Shaqs melhores que Shaq.

A adoção generalizada da tecnologia de edição de genes ajudará nessa busca. Escolhas individuais dos pais devem elevar a frequência média de variantes que aumentem a capacidade atlética na população geral. Isso elevará gradualmente a média da população e elevará a capacidade na ponta da curva da distribuição.

[O físico e matemático] Freeman Dyson especulou que, um dia, os seres humanos poderiam usar tecnologias genéticas para se modificar com vistas à exploração espacial –tornando-se mais resistentes a radiação, vácuo e gravidade zero e talvez capazes de extrair energia diretamente do sol. Inserção de genes de espécies diferentes, como genes de fotossíntese de plantas, dariam novo significado ao termo organismo geneticamente modificado.

A capacidade atlética pode seguir trajetória semelhante. A natureza dos atletas e dos esportes vai mudar devido à nova tecnologia genômica. As pessoas comuns perderão o interesse pelo esporte por causa disso? A história sugere que não: amamos admirar capacidades excepcionais e inimagináveis.

Em 2100, o esporte mais popular pode ser o combate entre gigantes de 2,5 metros, capazes de piruetas de balé seguidas de chutes na cabeça e manobras complexas de jiu-jitsu. Ou uma corrida de 100 metros rasos muito, muito rápida. E sem necessidade de doping.

STEPHEN HSU, 50, é professor de física teórica da Universidade Estadual do Michigan. Seu texto saiu originalmente na revista "Nautilus" .


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