Folha de S. Paulo


Metrô de Moscou ilustra mudanças na narrativa oficial da Revolução Russa

RESUMO Iconografia das estações do metrô moscovita revela mudanças da narrativa oficial até a tentativa de configurar uma identidade nacional. Inaugurada em 1935, a rede metroviária foi do tema épico da revolução às paisagens serenas de 2010, passando pela fase da potência militar e do resgate de um passado mítico.

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Nações são "comunidades imaginadas", diz Benedict Anderson. As identidades nacionais são esculpidas pelas narrativas do nacionalismo, que "inventam tradições", segundo Terence Ranger, revolvendo o solo do passado. Mas como produzir uma identidade para a União Soviética, que não era, nem pretendia ser, uma nação e, ainda por cima, surgira por um ato revolucionário de negação radical do passado?

Tal como os impérios, a URSS nasceu com vocação universal. O nome já diz: na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, cabem todas as nações que, rompendo com o capitalismo, adotem o sistema socialista.

O Império Russo não se definia por uma identidade nacional, mas pela lealdade ao czar. A URSS, sua sucessora, Império Vermelho, definia-se pela adesão a uma doutrina política.

Uma iconografia do metrô de Moscou ilumina as mudanças na definição da natureza da URSS, até a tentativa de configuração de uma identidade nacional.

O metrô da capital russa foi inaugurado em 1935, entre o Congresso dos Vencedores (1934) e o primeiro Processo de Moscou (1936), marcos da absolutização do poder de Josef Stálin.

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Estação Novokuznetskaya, em Moscou
Estação Novokuznetskaya, em Moscou

Suas estações, alcunhadas "palácios do povo", iluminadas por imensos lustres decorativos, revestidas por duas dezenas de variedades de mármore, adornadas por esculturas e mosaicos, são monumentos subterrâneos. Por meio delas, Stálin pretendia mostrar a apreciação que o poder devotava ao povo –e contar uma história sobre a pátria socialista.

No início, a identidade soviética era pós-nacional, moldada pelo tema épico da revolução proletária. A estação Ploshchad Revolyutsii, com suas 76 esculturas de bronze de figuras anônimas do povo revolucionário, uma ode a 1917, é a melhor, mas não a única, figuração do "assalto ao Céu".

A identidade revolucionária, impressa nas estações dos anos 1930, dá lugar a uma segunda narrativa, elaborada nas estações da Segunda Guerra Mundial (a Grande Guerra Patriótica, na linguagem soviética), que descrevem a URSS como gloriosa potência militar e econômica.

O "povo em armas" está representado nas estátuas militares da Baumanskaya e, sob outra forma, nos mosaicos da Novokuznetskaya e baixos-relevos da Elektrozavodskaya, que enaltecem o esforço industrial de guerra. Nessa camada intermediária da narrativa, a pátria já não é idêntica à revolução, mas ainda não deita raízes nas rochas da tradição.

O fim da guerra assinala o giro decisivo. Na Komsomolskaya, projetada sob inspiração de um discurso de Stálin de 1941, repetem-se imagens celebratórias do trabalho industrial, mas surgem figuras míticas do passado, como os santificados Alexander Nevsky (1221-63) e Dmitry Donskoy (1350-89). A Kiyevskaya, com murais alusivos à unidade russo-ucraniana, marca o fecho do percurso.

O apelo folclórico e o idílio do campo envelopam a URSS na Rússia eterna: a Mãe-Rússia da literatura nacional do século 19. Bem antes da implosão da URSS, o discurso nacional triunfou.

Hoje, a rede metroviária tem o dobro das estações existentes há meio século. Muitas das recentes são despojadas, mas se ergueram alguns novos "palácios do povo".

A narrativa revolucionária desapareceu. Dos anos 1960 para cá, mesclam-se as representações da pátria guerreira e da potência industrial com as evocações da alma russa imemorial. A Park Pobedy (2003) exalta as vitórias sobre Napoleão e Hitler, enquanto a Mariina Roscha (2010) incrusta a Rússia em serenas paisagens naturais. O tumulto terminou.

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Estação Ploshchad Revolyutsii, em Moscou
Estação Ploshchad Revolyutsii, em Moscou

Camponesa, na estação Ploshchad Revolyutsii. A Ploshchad Revolyutsii foi inaugurada em março de 1938, mês do último dos grandes Processos de Moscou, a série de farsas judiciais destinadas a exterminar os líderes bolcheviques de 1917. A ideia-força da revolução internacional desapareceu da cena soviética desde a ascensão de Stálin, na segunda metade da década de 1920. Substituiu-a o dogma paradoxal do "socialismo num só país", fundamento da coexistência permanente da URSS com o mundo capitalista. A revolução deixava de ser um imperativo político, petrificando-se como símbolo identitário exclusivo do Estado Soviético

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Estação Ploshchad Revolyutsii, em Moscou
Estação Ploshchad Revolyutsii, em Moscou

Soldado da revolução. A estação Ploshchad Revolyutsii (praça da Revolução), nas cercanias da praça Vermelha, foi inaugurada em 1938, quando os Processos de Moscou dizimavam a "velha guarda" bolchevique. Sob seus arcos de mármore vermelho e amarelo repousam as estátuas do escultor Matvey Manizer, autor de monumentos a Lênin, três vezes agraciado com o Prêmio Stálin. Entre as estátuas de bronze, aparecem intelectuais, operários, aviadores, caçadores, atletas, crianças, mulheres bolcheviques armadas, camponesas, mães e cães: o povo todo, unido sob o estandarte vermelho de 1917

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Estação Elektrozavodskaya, em Moscou
Estação Elektrozavodskaya, em Moscou

A indústria da guerra. A estação Elektrozavodskaya, aberta em 1944, no penúltimo ano da Segunda Guerra, exibe no vestíbulo seis emblemas em homenagem aos pioneiros da eletricidade. Seus pilares retangulares, adornados por grelhas douradas com o símbolo da foice e do martelo, completam-se com 12 baixos-relevos em mármore branco. São imagens dedicadas ao fronte de combate interno –isto é, ao trabalho dos profissionais, técnicos, operários, agricultores e pastores que sustentavam o esforço de guerra. Nessa etapa da narrativa, a identidade proletária original sofria uma sutil, mas crucial metamorfose. Nascia a pátria armada, potência duas vezes: nas artes da produção e da destruição

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O Lênin da Baumanskaya
O Lênin da Baumanskaya

O Lênin da Baumanskaya. Inaugurada em 1944, a estação Baumanskaya, em estilo art déco, também celebra o esforço de guerra, exibindo esculturas de soldados e operários. O líder bolchevique aparece representado em diversas estações, mas nesse mosaico, acrescentado anos mais tarde, há algo singular: uma proposta cronológica. 1905 é o ano do primeiro levante anti-czarista, o "ensaio-geral" da revolução. 1917 evoca a própria Revolução Russa. Já 1945, em meio a peças de artilharia pesada, assinala a vitória na Grande Guerra Patriótica. Lênin morreu em 1924 e, em princípio, nada tem a ver com isso. O "pai-fundador" da pátria revolucionária transfigura-se em "pai-fundador" da potência guerreira

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A estação Novokuznetskaya, de 1943
A estação Novokuznetskaya, de 1943

A estação Novokuznetskaya, de 1943, foi totalmente consagrada ao tema da Grande Guerra Patriótica. Sete mosaicos octogonais no teto representam soldados soviéticos em combate. Nos pilares de mármore branco e rosa destacam-se retratos em bronze de heróis guerreiros russos, entre eles o inevitável Alexandre Nevsky e o marechal czarista Mikhail Kutuzov (1745-1813), que se destacou nas guerras contra a Turquia e a França napoleônica. O Lênin do mural do vestíbulo, pairando acima de combatentes e blindados, emerge não mais como líder revolucionário, mas como sucessor dos comandantes militares do passado

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Camponesas ucranianas, em trajes típicos, na colheita, num dos mosaicos
Camponesas ucranianas, em trajes típicos, na colheita, num dos mosaicos "étnicos" da Kiyevskaya

Camponesas ucranianas, em trajes típicos, na colheita, num dos mosaicos "étnicos" da Kiyevskaya. Um decreto do governo soviético transferiu a Crimeia da Rússia para a Ucrânia em fevereiro de 1954, um mês antes da inauguração da Kiyevskaya. O "presente" tinha a finalidade geopolítica de soldar para sempre o destino da Ucrânia ao da Mãe Rússia. Dois anos mais tarde, Nikita Kruschev, novo líder soviético, pronunciou perante o 20º Congresso do Partido Comunista seu célebre "discurso secreto" de denúncia dos crimes de Stálin. A tentativa de produção de uma identidade nacional para o Estado Soviético acompanhou a "desestalinização"

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Os mosaicos da estação Kiyevskaya
Os mosaicos da estação Kiyevskaya

Segundo a mitologia nacional russa, o Principado de Kiev, na atual Ucrânia, é o berço original da "Mãe-Rússia". Os mosaicos da estação Kiyevskaya enaltecem a supostamente indissolúvel unidade russo-ucraniana. Inaugurada em 1954, ano seguinte ao da morte de Stálin, a Kiyevskaya contrasta com as estações construída durante a guerra mundial. Como em outras da mesma década, o soldado, o operário, a indústria e as máquinas de guerra cedem lugar a evocações da vida rural, das particularidades regionais e da diversidade étnica dos povos da Grande Rússia. Lênin já não surge entre ícones da revolução ou da guerra, mas em bandeiras desfraldadas numa festa popular

DEMÉTRIO MAGNOLI, 58, sociólogo e doutor em geografia humana, é colunista da Folha.


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