Folha de S. Paulo


Na cadeia, Bandido da Luz Vermelha cantava Roberto Carlos e Raul Seixas

Taubaté, 1987

Nada mais daquele guarda-roupa estiloso adotado no auge da fama para dançar iê-iê-iê em boates de Santos. Três décadas atrás, quando nos encontramos, João Acácio vestia calça cáqui, camiseta branca e tênis de pano. Nos cabelos curtos trazia discretos sinais de embranquecimento. Era um sábado de agosto. Vinte anos antes, ele, o Bandido da Luz Vermelha, havia sido preso após longa caçada policial lembrada neste mês pela Folha.

Na sala onde eu o entrevistava para o jornal "O Estado de S. Paulo", João Acácio se dizia regenerado. Já não estava ali, na Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, onde conversávamos, o homem destemido que nos anos 1960 roubava joias e dinheiro em casas luxuosas depois de acordar os moradores com o clarão de uma lanterna.

Nem o sujeito que teve a ousadia de revelar a um desembargador a vontade de matar algumas autoridades e depois "morrer com seis tiros na cara". Menos ainda o galanteador incorrigível que, em plena sessão de julgamento, lançou piscadelas a uma mulher.

Divulgação
O cineasta Rogério Sganzerla abraça João Acácio Pereira da Costa, o Bandido da Luz Vermelha
O cineasta Rogério Sganzerla abraça João Acácio Pereira da Costa, o Bandido da Luz.Vermelha

Citado em 94 processos como autor de assaltos, homicídios e estupros, ele se declarava arrependido. "Sou honesto, bacana, amigo de Deus." Sua rotina agora se resumia ao trabalho na oficina de montagem de prendedores de roupa e à leitura da Bíblia.

Aprendera a ser "humilde, manso", apesar de uma ou outra recaída para os lados da imodéstia –ainda se achava sábio e bonito, ainda se mostrava orgulhoso das façanhas que o transformaram num "bandido famoso, noticiado pela imprensa internacional". Coisas do passado. Quem se apresentava ali, aos 45 anos, era um homem cujos prazeres, revelados em meio a frases atropeladas, não iam além de comer chocolate e cantar.

Ofereceu a mim e a "toda a humanidade" interpretações emocionadas de "Caminhoneiro", de Roberto e Erasmo Carlos, e de "Cowboy Fora da Lei" e "Gita", de Raul Seixas. Presenteou-me com um livreto, "Novo Testamento - Salmos, Provérbios".

No início, uma frase escrita a caneta: "Luz Vermelha ama só a Deus", afirmação desmontada numa das páginas finais: "Luz Vermelha não ama ninguém". Antes de ser reconduzido à cela, caminhando por um corredor mal iluminado, voltou-se para mim e prenunciou: "Hoje você vai sonhar comigo". Não deu outra.

Numa Remington da Casa de Custódia, escrevi o texto, transmitido ao jornal por telefone. Quatro meses depois, recebi uma carta de João Acácio. Outras viriam, também endereçadas ao fotógrafo Newton Aguiar, meu parceiro naquela entrevista. Em todas, a mesma despedida: "Respeitosamente, sem mais, assino-me: João Acácio Pereira da Costa, o saudoso e inesquecível exLuz Vermelha".

Acervo Pessoal
Carta do Bandido da Luz Vermelha para o jornalista Fernando Lichti Barros
Carta do Bandido da Luz Vermelha para o jornalista Fernando Lichti Barros

Agradecia pela visita, uma das raras recebidas em 20 anos na prisão, seis deles passados no Manicômio Judiciário. Ele contava que, depois daquela nossa conversa, até Gil Gomes o havia procurado com uma equipe da TV Record para uma "produção estupenda".

Alternando frases escritas com tinta azul e vermelha, desejou-me um feliz Natal, "com todo conforto" e um cardápio variado, composto por "bananas, champanhe, uísque, chocolate, nozes e –por que não?– amendoins".

Numa outra carta, o ex-Luz afirmou ter sido "positivamente o homem que bateu recorde nas paixões, nas perseveranças e na saudade que abalou corações". E continuou: "Como homem de fabulosa fama internacional, sempre fui curioso e vivi uma vida historiada... Fui homem que passou para a galeria dos bandidos lendários, fui manchete de jornais e cheguei a ser recorde e sucesso de literatura".

Tudo isso até o dia em que alguma coisa se deu: "Entrei em eclipse lunar e solar, e assim, num duelo de titã entre o crime e a perfeição, vi que o crime não compensa".

João Acácio ficou preso até 1997 e voltou para Joinville, sua cidade natal, onde seria assassinado.

FERNANDO LICHTI BARROS, 64, jornalista e músico, é autor de "Do Calypso ao Cha-cha-chá - Músicos em São Paulo na Década de 60" (Nova Ilusão).


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