Folha de S. Paulo


Demissão de engenheiro do Google expõe tabu na discussão sobre gênero

Sabe aquele relatório interno de James Damore, do Google, que vazou para a imprensa? Aquele segundo o qual não devemos esperar que os trabalhadores de cada profissão reflitam a demografia da população como um todo?

Bem, foi meio estúpido escrever isso. Mas não porque estivesse errado. Foi estúpido Damore ter imaginado ser possível discutir razoavelmente esse assunto –e justo nos Estados Unidos.

A versão do memorando de Damore que apareceu inicialmente no site Gizmodo foi publicada sem referências e imagens, mas, agora, ele já tem página própria na internet, acompanhado de links e material gráfico.

O texto de Damore me parece um panfleto produzido por um jovem branco bem-intencionado, mas completamente desavisado. Ele não merecia ser demitido por isso. Talvez merecesse uma reprimenda por digitar sem pensar. Mas, no mundo dele, pedir que um assunto seja discutido aparentemente basta para causar demissão.

Dado Ruvic-29.out.2014/Reuters
Google demitiu autor de relatório que liga falta de mulheres na chefia a questões biológicas

Não escrevo normalmente sobre a sub-representação de mulheres nas ciências. Não me sinto qualificada para representar os sub-representados. Ao que parece, não sofro devidamente em meu ambiente dominado pelos homens. Na medida em que é possível confiar em testes on-line de personalidade, sou uma mulher embaraçosamente atípica. Não deve causar surpresa que eu tenha ido parar na física teórica.

Também existe um motivo mais sinistro para que eu mantenha a boca fechada. Tenho medo de perder o pouco apoio de que desfruto entre as mulheres das ciências se resolver atacá-las pelas costas.

Vivi por três anos nos Estados Unidos e por mais três no Canadá. Em diversas ocasiões, ao longo desses anos, fui informada de que minhas opiniões sobre as mulheres na ciência são "radicais", "controversas" ou "provocativas".

Por quê? Por eu ter declarado o óbvio: mulheres são diferentes dos homens. Quanto a isso, concordo completamente com Damore. Ter uma proporção de uma mulher para cada homem não é algo que deveríamos esperar em todas as profissões –tampouco deveríamos perseguir esse objetivo.

Mas, quanto mais mantenho a boca fechada, mais acredito que meu silêncio é um erro, pois significa deixar a discussão –e, com ela, o poder– com aqueles que gritam mais alto. Como a [rede noticiosa] CNBC. Ela quer que fiquemos "chocados" com o relatório de Damore, numa tentativa transparente de provocar indignação e, com isso, atrair leitores e espectadores. Você já está indignado?

Polêmicas midiáticas como essa cada vez mais me deixam preocupada com a impressão que os cientistas causam nas novas gerações. Em garotos como Damore. Creio que eles nos acham todos idiotas, porque os mais lúcidos entre nós não se pronunciam. E, quando garotos se acham inteligentes demais, escrevem panfletos com o objetivo de reinventar a roda.

O QUE A CIÊNCIA DIZ

O fato, porém, é que boa parte dos dados do memorando de Damore são sustentados pelas pesquisas. De fato, as mulheres são, em média, mais neuróticas do que os homens. Isso não é insulto, mas um termo de uso comum na psicologia.

As mulheres também se interessam mais por pessoas do que por coisas, em média. E, em média, também dão valor maior ao equilíbrio entre a vida pessoal e a carreira, reagem de modo diferente ao estresse, competem sob regras diferentes. E assim por diante.

Não sou socióloga nem psicóloga, mas, pelo que entendo da literatura nessas áreas, as afirmações acima não dão margem a controvérsia. Tampouco são novidade.

As mulheres são diferentes dos homens, por natureza e em função da maneira pela qual são criadas, ainda que a distinção entre o que é natural e o que vem da criação ainda seja uma questão em aberto. Mas as razões por trás desse fato não influenciam a questão sobre o mercado de trabalho: mulheres são diferentes em aspectos que plausivelmente influenciam a escolha da profissão.

Não, o problema do argumento de Damore não está no ponto de partida, mas nas conclusões a que ele chega.

Para começar, até eu sei que boa parte do trabalho do Google tem as pessoas como centro. O objetivo é servir as pessoas diretamente, ou analisar dados sobre pessoas, ou imaginar o futuro das pessoas. Se você deseja dedicar sua vida a coisas e ideias, escolha a engenharia ou a física, não o desenvolvimento de softwares.

O fato de que desenvolver softwares requer capacitações "femininas" foi apontado claramente por Yonatan Zunger, antigo funcionário do Google. Mas, dado que a física me interessa mais do que o desenvolvimento de softwares, deixarei esse assunto de lado.

O PROBLEMA

Um erro maior no relatório de Damore está em algo que vejo com frequência: presumir que competências e desempenho profissionais possam ser deduzidos com base nas diferenças entre grupos demográficos. Isso não é verdade, e ponto final.

Acredito, por exemplo, que, se a parcialidade na seleção e a desigualdade de oportunidades não existissem, os escalões mais altos da ciência e da política seriam dominados por mulheres. Assim, buscar distribuição igualitária de posições conferiria vantagem desleal aos homens. Desafio qualquer um a me apontar provas em contrário.

Não me surpreendo nem um pouco, porém, por Damore presumir que as diferenças entre traços tipicamente femininos e tipicamente masculinos signifiquem que os homens sejam mais capacitados. Está aí a parcialidade de que ele acredita não sofrer. E, sim, sou igualmente parcial em favor das mulheres. Estamos empatados, portanto.

O maior problema do memorando de Damore, no entanto, é que ele não entende o que torna uma empresa bem-sucedida. Se fração significativa dos funcionários acredita que diversidade é importante, ela é importante. Não é preciso dar nenhuma justificação além dessa.

Sim, você poderia argumentar que aumentar a diversidade pode não melhorar a produtividade. Os dados quanto a isso são obscuros, para dizer o mínimo. Há uma história sobre mulheres presidentes de empresas na Suécia que supostamente prova alguma coisa, mas preciso ver estatísticas melhores antes de aceitá-la. E, de qualquer forma, os Estados Unidos não são a Suécia.

O mais importante é que a produtividade depende do bem-estar dos empregados. Se um local de trabalho com alta diversidade é algo que eles valorizam, então esse é um objetivo digno de esforço, ponto.

O que Damore parecia pretender, contudo, era simplesmente discutir a melhor maneira de enfrentar a atual falta de diversidade. A desigualdade de oportunidades e a parcialidade na seleção são reais. (Se você duvida disso, você é um problema e deveria se informar mais.)

Isso significa que a atual representação das mulheres, das pessoas deficientes, das pessoas desprivilegiadas e de outras minorias é menor do que deveria ser num mundo ideal no qual não vivemos. O que se pode fazer a respeito?

SOLUÇÕES

Uma maneira de enfrentar a situação é esperar que o mundo recupere o atraso. Educar as pessoas sobre o preconceito, trabalhar para remover obstáculos à educação, mudar a imagem social dos gêneros. Isso funciona –mas muito devagar.

Pior, um dos maiores obstáculos que as minorias enfrentam é um problema do tipo "o ovo ou a galinha", que o tempo não bastará para resolver. As pessoas evitam profissões nas quais existam poucas pessoas parecidas com elas. Esse é um obstáculo que a ação afirmativa poderia resolver de maneira rápida e eficiente.

Há um preço a pagar, porém, pelo recrutamento preferencial daqueles que hoje são sub-representados. As pessoas beneficiadas por ações afirmativas enfrentarão um novo preconceito: "Elas não foram contratadas por sua competência, mas devido a alguma política de diversidade!".

Como costumava acreditar que era necessário evitar essa reação adversa a todo custo, eu me opunha às ações afirmativas. Durante meus anos na Suécia, contudo, percebi que a ideia funciona –ao menos para as mulheres– e também compreendi o motivo: a ação afirmativa faz com que a presença das mulheres se torne corriqueira.

Na maior parte dos países do norte da Europa, é comum haver mulheres em posições de liderança na política e na indústria. Sua presença não provoca comentários, não atrai olhares.

Quando isso se torna comum, as pessoas deixam de prestar atenção ao gênero de um candidato, o que por sua vez reduz a parcialidade na seleção.

Não sei, porém, se isso funcionaria na ciência, onde as capacidades requeridas são muito diferentes. As ciências sociais não oferecem resultados claros: é difícil dizer que proporção do sucesso do norte da Europa se deve à cultura nacional. Portanto, minha atitude diante de ações afirmativas continua ambígua.

Precisamos ser claros e admitir que esse tipo de política pode implicar que, vez ou outra, a pessoa mais capacitada não será contratada. É necessário, portanto, fazer um juízo de valor, e não uma dedução lógica com base nos dados.

A diversidade importa o bastante para que você tolere temporariamente um risco ampliado de não contratar a pessoa mais qualificada? Esse é o compromisso que ninguém parece disposto a discutir com clareza.

Também preciso deixar claro que escrevo este texto como europeia, agora trabalhando novamente na Europa. Para mim, a contribuição mais relevante para a igualdade de oportunidades é um ensino superior e um sistema
de saúde de custo acessível, acompanhados de licença-maternidade e licença-paternidade bancadas pelo governo.

Sem isso, os grupos que sofrem desvantagem social continuarão sub-representados, e as empresas continuarão a temer perda de faturamento se contratarem mulheres em idade fértil.

É justo ressaltar que, nos Estados Unidos, esse é um problema que nem o Google é capaz de resolver.

Mas problemas não são resolvidos se gritarmos "assédio" sempre que alguém quiser discutir se um esforço de diversidade é realmente efetivo. Sei por experiência, e uma pesquisa conduzida no Google confirma, que o ceticismo de Damore sobre as práticas atuais é generalizado.

Eis algo que deveríamos discutir. Eis algo que o Google deveria discutir. Porque, por bem ou por mal, o caso atraiu muita atenção. A resposta do Google nesse caso servirá de exemplo no futuro.

Damore foi demitido por uma tentativa bem-intencionada, ainda que amadora, de design institucional, com base em informações incompletas que ele extraiu de pesquisas científicas.

Por mais imperfeita que tenha sido sua tentativa, ele foi demitido, em resumo, porque pensou por conta própria. Que exemplo isso estabelece?

Tradução de PAULO MIGLIACCI

SABINE HOSSENFELDER, física teórica, é pesquisadora no Instituto Frankfurt para Estudos Avançados (Alemanha). Este texto foi publicado originalmente em seu blog: http://backreaction.blogspot.com.br/


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