Folha de S. Paulo


Pouco mudou para músicos desde que Beethoven ganhou 50 libras pela Nona

Mark Allan/24.ago.2016
A Osesp participa do BBC Proms em 2016, com a estreia de
A Osesp participa do BBC Proms em 2016, com a estreia de "Kabbalah", de Marlos Nobre, sob regência de Marin Alsop e Gabriela Montero ao piano

Devem ter sido as 50 libras esterlinas mais bem gastas da história. Exatamente 200 anos atrás, a Royal Philharmonic Society britânica encomendou a Nona Sinfonia de Beethoven, um trabalho que inaugurou esse formato (e nos deu a melodia da "Ode à Alegria"). A sinfonia vem sendo tocada desde então.

Agora, como no tempo de Beethoven, a música erudita é uma ilustração perfeita da economia dos concertos; os compositores vivem na dependência de patronos inconstantes e dos trabalhos que eles lhes encomendam. Mas a paisagem em que eles operam hoje não poderia ser mais diferente.

Embora a música clássica seja de muitas maneiras uma cena vibrante, ela geralmente ocupa as margens da cultura contemporânea, tanto que representou apenas 53 milhões do total de 1 bilhão de horas de rádio ouvidas pelos britânicos no último trimestre.

Com verbas reduzidas, as escolas estão cortando a música de seus currículos. E, enquanto Beethoven conta com 2,5 milhões de ouvintes mensais no serviço de streaming Spotify, Katy Perry tem 22 milhões.

A maneira principal de ganhar a vida nesse mundo é por meio de encomendas de obras por parte de orquestras, festivais, emissoras ou (ocasionalmente) indivíduos particulares. Com a exceção dos compositores mais famosos, entretanto, os honorários são baixíssimos.

"Uma canção pop pode levar uma tarde para ser escrita. Uma sinfonia leva vários anos e talvez só seja apresentada uma única vez. A remuneração paga por essas coisas não deveria ser igual", argumenta Sally Cavender, da editora Faber Music.

ENCOMENDA DA BBC

Tom Coult é um compositor jovem que recebeu um pedido de peso. A nova temporada do BBC Proms começou no dia 14 de julho, e Coult, 28 anos, foi convidado a escrever a primeira obra tocada na primeira noite.

A BBC Proms é o que há de mais mainstream em matéria de música erudita: trata-se de uma série anual de mais de 90 concertos de música clássica –além de incursões na seara do jazz, gospel e música de teatro– com algumas das melhores orquestras do mundo.

Trecho de "St John's Dance", de Tom Coult, na Primeira Noite dos Proms, 14 de julho de 2017

Trecho de "St John's Dance", de Tom Coult, na Primeira Noite dos Proms, 14 de julho de 2017

Fundada em 1895, a série de eventos atraiu mais de 300 mil espectadores ao vivo no ano passado, e a última noite dos Proms, que em 2016 foi vista por 9,1 milhões de pessoas na TV, é adorada ou ironizada por sua plateia de pessoas agitando bandeiras britânicas e pela sequência de músicas patrióticas que costuma ser apresentada.

A primeira noite é a que recebe a segunda maior atenção. Tom Coult deu o tom, literalmente, da temporada inteira.

Ele recebeu em fevereiro a encomenda da partitura; sua composição de seis minutos de duração teria que ser entregue em maio. Então ele teve que entrar em ação rapidamente.

Coult adotou uma abordagem de trabalho estilo século 21: assistia a vídeos de Proms passadas no YouTube, via o regente entrar em cena, esperava-o erguer a batuta –e então apertava o "pause". "Eu pensava, 'ok, o que eu faria para romper esse silêncio?'".

Ele acabou optando por um "solo muito hesitante de violino" que conduz a "uma série de danças, mas todas elas saem completamente de controle de várias maneiras".

Na apresentação da Orquestra Sinfônica da BBC na primeira noite, as tubas davam o ritmo forte e um xilofone intervinha, enquanto as cordas voavam loucamente, aparentemente abrindo um espaço para os dois meses de música que viriam a seguir.

A BBC é uma fonte importante de pedidos feitos a compositores: encomenda cerca de 30 obras por ano, desde canções de Natal até sinfonias. Outras orquestras destacadas variam em matéria de encomendas: a London Symphony Orchestra apresentou 27 trabalhos em estreia mundial nas últimas cinco temporadas, enquanto a Filarmônica de Viena tocou apenas 11 desde 2010.

Todas destacam seu interesse por música nova, mas um representante de Viena admitiu que "parte de nosso público não gosta tanto assim" de novidades.

Tom Coult hesita quando lhe perguntamos o que esse convite importante pode significar para sua carreira, dizendo apenas que "foi facilmente o trabalho mais público que já fiz, talvez o mais público que farei na vida".

Mas Cavender, que publica suas composições e também as de outros compositores vivos respeitados, como Thomas AdPs e George Benjamin, não deixa margem a dúvidas: "Sozinho, esse fato vai ajudar a consolidar a carreira futura dele".

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EDITOR MUSICAL

A tarefa dos editores musicais é criar, filtrar e recomendar essas oportunidades, moldando carreiras e assegurando que os honorários continuem a ser suficientes.

Janis Susskind, diretora gerente da Boosey & Hawkes, que publica as composições de John Adams e Harrison Birtwistle, diz que "para qualquer compositor com nome, partiríamos de pelo menos mil libras por minuto", e com frequência múltiplos desse valor. Música não chega a ser vendida realmente por quantidade, como tecido, por exemplo, "mas é assim que se faz para chegar a um valor aproximado".

Porém, mesmo que um compositor possa receber algo perto disso por uma composição, é uma receita lamentavelmente insuficiente para sua subsistência.

Coult calcula que o máximo que já ganhou foi cerca de 800 libras por minuto. Mas, com o número de pedidos de composição que recebe hoje, "ganho algo em torno de 10 mil libras por ano [cerca de R$ 42 mil] por essas duas ou três obras".

Como viver em Londres com cerca de 10 mil libras por ano é praticamente impossível, Coult suplementou sua renda com uma bolsa de Ph.D. em composição, e, a partir de outubro deste ano, vai iniciar uma residência de dois anos no Trinity College, em Cambridge, com bolsa anual de US$ 25 mil. São a academia e os benefícios sociais que lhe possibilitam viver de música, e não o ato de compor.

PARTICIPAÇÃO NA BILHETERIA

Tansy Davies, 44, é conhecida sobretudo por sua bem recebida ópera "Between Worlds", baseada nos acontecimentos do 11 de Setembro de 2001, com seus personagens encurralados na Torre Norte do World Trade Center, sem poderem sair.

Ela diz que trabalha "como louca" e que é capaz de passar 18 meses para escrever uma peça orquestral de 25 minutos de duração (incluindo outras composições no meio). Mesmo a mil libras o minuto, isso não parece uma renda suficiente para viver.

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Os retornos geralmente deixam muito a desejar. Uma obra de um compositor vivo recebe 4,8% da bilheteria, no caso de concertos; se o concerto inclui obras por mais de um compositor vivo, essa porcentagem é dividida entre eles, de acordo com o comprimento de seus trabalhos.

Nos casos em que o compositor criou uma ópera ou um balé, os chamados "grandes direitos" são mais lucrativos: nesse caso, a editora musical negocia a porcentagem da bilheteria, que pode chegar a 10%. De qualquer maneira, o compositor é obrigado a dividir a remuneração com a editora.

Em sua sala de trabalho em Bloomsbury, Londres, Sally Cavender folheia a declaração da renda auferida por compositores com royalties de rádio e televisão. "Algumas das rendas de que estamos falando são ínfimas! £0,01, £1,24, £12,85, £10,49, £1... Receber £0,01 quando sua composição é tocada na rádio!"

Cavender diz que a economia da composição musical nem sempre foi tão ruim. Vinte anos atrás, a BBC e a PRS (que recolhe os royalties para compositores e instrumentistas) mudou a fórmula de cálculo dos honorários.

Até então, a música erudita tinha um "tipo de fator multiplicador" de seus honorários, em comparação com a música pop, levando em conta sua plateia menor; hoje os compositores, independentemente do gênero musical, recebem de acordo com o número de pessoas que ouvem suas criações.

As cifras trimestrais mais recentes da Rajar, que mede as plateias de rádio, mostraram que a Rádio 3 tinha tido 2,1 milhões de ouvintes, enquanto a estação de música pop Rádio 1 tivera 9,6 milhões.

O que as editoras fazem com os compositores é, na realidade, um investimento de longo prazo. Em uma economia criativa como essa, esse investimento é, ao mesmo tempo, uma estratégia conservadora e estranhamente radical.

"Pelo fato de o retorno ser tão pequeno para a editora", explica Cavender, "pensamos em um prazo de 20 a 30 anos. Muito diferente de um sabão em pó, que precisa ser rentável em dois anos."

O investimento abrange a edição de partituras, a digitalização de manuscritos, a preparação das partes para cada instrumento e, naturalmente, a publicação de tudo isso.

Susskind diz: "A música nova exige muito de nossa infraestrutura". Mas ela acrescenta que esse enfoque de longo prazo funciona bem: a Boosey é rentável com seus compositores vivos, e muitos estão na empresa há décadas.

As editoras musicais britânicas também fecham um contrato incomum com seus compositores, diferente de qualquer coisa existente em outros gêneros musicais ou nas artes em geral: os compositores entregam às editoras seus direitos autorais por toda a vida mais 70 anos, e as editoras dão a eles (e seus herdeiros) uma participação de 50%.

(Segundo Cavender, Adès disse, em tom jocoso: "Quando eu morrer, a inscrição na minha lápide dirá 'copyright Faber Music'.") Após a morte do compositor, ela diz, "continuamos a ganhar o mesmo valor, mas sem as despesas".

Abrir mão dos direitos autorais é controverso: se o compositor troca de editora, deixa os direitos autorais com a editora que publicou sua obra até então. Quando Benjamin Britten deixou a Boosey & Hawkes para fundar a Faber Music, em 1965, a Boosey conservou os direitos sobre "Peter Grimes", apresentada com frequência, enquanto a Faber ficou com "Death in Venice".

O compositor americano Philip Glass argumentou contra essa cláusula de direitos autorais e é uma figura de peso suficiente para ter conseguido conservar os dele, mas ele é uma raridade. É um negócio difícil, mas que não chega a ser faustiano.

"Os compositores precisam ter algo de valor para oferecer às pessoas que vão investir neles e em sua música", diz Sally Cavender. "Se querem que a música deles seja disseminada pelo mundo, alguém precisa se encarregar disso."

INDEPENDENTES

Os compositores que trabalham sem editora não precisam assumir esse tipo de compromisso. Porém, sem contar com o apoio comercial ou administrativo de uma Faber ou Boosey, eles terão muitos outros encargos a encarar.

Samantha Fernando, 32 anos, descreve tudo o que um compositor que se autopublica precisa saber e fazer para que seja remunerado por sua música e para que ela seja ouvida: criar um site, fazer a composição tipográfica de suas partituras para colocá-las à venda em sites como Composers Edition e BabelScores (uma espécie de Amazon para o Shostakóvitch moderno), estabelecer relacionamentos com diretores de orquestra e instrumentistas, negociar comissões e honorários de contratos.

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E tudo isso armado unicamente com os valores que constam da tabela do Sindicato de Músicos (que não mudam desde 2008)–, mais qualquer adicional que sua reputação lhe possa valer.

A internet ajuda: os assistentes de Bach copiaram à mão "O Cravo Bem-Temperado", sua coletânea de composições para cravo solo, para garantir sua disseminação rápida. Hoje, o YouTube e o Spotify permitem uma distribuição global instantânea que Bach teria invejado.

Durante o tempo que Samantha Fernando passou estudando em um conservatório ou obtendo seu Ph.D. em composição em Oxford, nunca ninguém lhe explicou como subsistir como compositora. Parece uma falha.

Depois de concluir a universidade, os compositores jovens frequentemente recebem encomendas de obras de entidades como a Fundação Britten-Pears ou conseguem vagas em programas de desenvolvimento como o esquema Panufnik da London Symphony Orchestra. Mas, quando esses esquemas escasseiam, o espírito empreendedor dos compositores precisa entrar em ação.

Os antecessores musicais de Fernando também procuravam patronos: Ludwig 2º da Bavária patrocinou a estreia de "Tristão e Isolda", de Wagner; Haydn foi músico na corte húngara dos Esterhazy; a Igreja financiou a música das liturgias. Mas esse tipo de figuras e instituições, que financiavam a carreira de compositores, não existe mais.

Nina Whiteman, 36 anos, seguiu uma jornada exploratória semelhante à de Samantha Fernando. Quando não conseguiu encontrar repertório para seu conjunto –flauta, violoncelo e ela própria como mezzo-soprano–, começou a encomendar composições. Isso elevou seu perfil, fortaleceu sua rede e a levou a receber encomendas de outros, incluindo uma da BBC Radio 4 –a obra foi tocada pela BBC Philharmonic.

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Whiteman diz que sua remuneração habitual é algo entre 1.000 e 4.000 libras, valor pelo qual ela pode compor uma peça orquestral de dez a 15 minutos de duração, levando dois ou três meses para completar o trabalho em regime de tempo parcial. Como outros compositores com quem conversei, ela destacou que não compõe por dinheiro (de qualquer maneira, isso seria infrutífero); seu prazer está na realização de compor.

Surpreendentemente, nem todos os compositores sem contrato adorariam a oportunidade de ser representados por editoras como Faber ou Boosey. Whiteman fala em conservar sua independência longe de uma editora, e Samantha Fernando diz que o sistema de trabalho integral para uma editora é um modelo que está morrendo na era da internet, apesar de seu status e de sua simplicidade.

Mas ela também parece lamentar o fato: "Às vezes, acho que seria tão mais fácil não ter que fazer todas essas outras coisas. Às vezes, penso que eu deveria apenas compor música, e nada mais."

A ESTREIA

Todos os compositores sucumbem a uma doença particular, algo que talvez sirva para lançar luz sobre os aspectos econômicos mais arriscados dessa forma de arte: a síndrome da première.

Um elemento da subsistência de um compositor deveriam ser os honorários recebidos sempre que suas obras são reapresentadas, mas a síndrome da première, que nasceu há cerca de 20 anos, privilegia a estreia de uma obra, segundo Cavender.

Para Mark Pemberton, da Associação de Orquestras Britânicas, isso não funciona financeiramente: "Custa caro preparar uma obra para ser apresentada. Todo o custo recai sobre aquela primeira apresentação. Por isso, ficamos presos nesse modelo e queremos encontrar uma saída".

O paradoxo diz respeito a algo fundamental na música erudita: os compositores gostariam que seus trabalhos mais antigos fossem apresentados mais de uma vez, mas, em um mercado que não está crescendo, isso significaria que receberiam menos pedidos de trabalhos novos. No entanto, sem serem tocadas muitas vezes, as obras não têm chances de ingressar no repertório e de ajudar a consolidar a reputação do compositor no longo prazo.

E isso também pode ser negativo para a arte. Elena Kats-Chernin, que os leitores britânicos talvez conheçam por ser a criadora da música usada por vários anos em um anúncio do banco Lloyds, compara uma composição nova a um bebê recém-nascido, "ainda todo enrugado": "Ela precisa crescer. A apresentação seguinte será muito melhor, porque eu, como compositora, terei tido tempo de ouvir a música de novo e possivelmente de modificar algumas coisinhas das quais não gostei. Isso é ótimo. Se a música não é apresentada outras vezes, você não tem essa oportunidade".

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Os ouvintes também podem querer mais oportunidades de ouvir músicas novas, pois a música nova, diferentemente das composições melódicas e harmônicas tradicionais, não se mostra tão agradável quanto poderia ser o caso de uma sinfonia de Haydn quando ouvida pela primeira vez.

Já vi o "Troubairitz" de Davies –baseado nas canções de trovadoras do século 11– tocado no Wigmore Hall, no West End de Londres. Mas o espectro da música nova é tão amplo que ouvi a mesma obra mais tarde na sala dos fundos, escura e abafada, de um pub em Dalston, na zona leste de Londres, como parte da série de apresentações Nonclassical.

A cantora era sedutora, defensiva, astuta, desafiadora, e as pessoas da plateia –segurando cervejas nas mãos, e com os cabelos penteados em topknots [coques no topo da cabeça]– assobiaram e gritaram quando ela terminou.

Enquanto a economia da música erudita for capaz de triunfar sobre a pobreza e os infortúnios, os trovadores do século 21 poderão continuar a cantar.

Tradução de CLARA ALLAIN


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