Folha de S. Paulo


Brasil integra projeto que permitirá ver novas fontes de energia no espaço

RESUMO Avanços na tecnologia de satélites e telescópios permitiram aprofundar o conhecimento sobre modalidades de radiação extremamente energéticas, como os raios X. Agora, observatórios construídos na Espanha e no Chile com participação brasileira prometem incrementar o repertório de fontes emissoras conhecidas.

Consórcio CTA
Simulação do observatório a ser construído pela Rede de Telescópios Cherenkov nos Andes chilenos
Simulação do observatório a ser construído pela Rede de Telescópios Cherenkov nos Andes chilenos

A "Noite Estrelada", do pintor holandês Vincent van Gogh (1853-90), talvez a mais famosa representação artística do céu noturno, mostra uma natureza em convulsão. Seu aspecto revolto, porém, diz respeito mais ao estado interior do artista do que à visão pacífica do firmamento que nos é familiar.

Os antigos referiam-se a ele como a "esfera das estrelas fixas", em alusão a sua imutabilidade secular. A realidade, no entanto, tal como a conhecemos hoje, não poderia ser mais diferente.

Longe do aparente marasmo que se pode contemplar a olho nu a cada noite, as dezenas de satélites astronômicos e observatórios terrestres que varrem o céu registram explosões celestes cuja duração pode ser breve como um piscar de olhos, mas emitir mais energia do que o Sol produzirá em seus dez bilhões de anos de existência.

Essa imagem moderna do cosmo é resultado do desenvolvimento dos telescópios e detectores. A imensa maioria das explosões que os astrônomos identificam ocorre a bilhões de anos-luz da Terra, longe demais para ser percebida pelo olho humano –cada ano-luz equivale a 9,5 trilhões de km (distância percorrida pela luz em um ano).

A mais distante de que se tem registro é a GRB 090423 –sigla em inglês para Explosão de Raios Gama, seguida da data em que foi captada pelos astrônomos (23 de abril de 2009). Apesar de detectado recentemente, esse cataclismo cósmico ocorreu a mais de 13 bilhões de anos-luz de distância, em um passado longínquo, quando o Universo tinha menos de 10% de sua idade atual.

A evolução da astronomia permitiu não apenas um olhar mais profundo mas também uma visão mais abrangente do Universo.

Desde o final da Segunda Guerra (1939-45), a astrofísica vem conquistando janelas antes opacas à inspeção humana, passando da estreita faixa observacional correspondente à luz visível para conquistar todo o espectro eletromagnético –das ondas de rádio às formas de radiação mais energéticas, como os raios X e gama.

Do mesmo modo que fotografias de uma paisagem tiradas com uma câmera comum e com uma infravermelha são diferentes, o céu visto em cada uma dessas bandas (micro-ondas, luz visível, raios X etc.) surge totalmente novo.

Passar a energias cada vez mais altas significa observar o "Universo extremo". Enquanto as observações em ondas de rádio nos mostram a emissão do gás frio armazenado em nuvens entre as estrelas, as análises em raios gama revelam os fenômenos mais energéticos e cataclísmicos do cosmo –como explosões estelares e a atividade de buracos negros devorando nuvens de gás e estrelas vizinhas.

Quanto mais intenso um processo, mais breve ele tende a ser. E o céu em raios gama, diferentemente daquele observado a olho nu, mais parece uma árvore de Natal, com luzes piscando em todas as direções, como mostra uma simulação feita para o satélite Fermi, da Nasa (agência espacial dos EUA), disponível em go.nasa.gov/2vqXk3L.

RADIAÇÃO DANOSA

Os raios gama cósmicos são tão energéticos –até 1 bilhão de vezes mais que a luz visível– que não conseguem chegar ao solo, sendo absorvidos pouco depois de adentrar a atmosfera terrestre, a uma altitude de 10 km a 15 km.

Visto que tal radiação é danosa para tecidos vivos e material genético, essa blindagem atmosférica é um pré-requisito para a vida na Terra –e um problema para uma eventual colonização do espaço.

A detecção direta da radiação, portanto, só pode ser feita por satélites, dos quais o mais importante é o Fermi. Isso não impede, porém, que os raios gama sejam observados indiretamente, por meio de telescópios instalados na superfície da Terra.

Ao serem absorvidos no alto da atmosfera, os raios não perdem sua energia; ela simplesmente se transforma em uma enorme cascata de partículas secundárias (essencialmente, elétrons e sua antimatéria, os pósitrons), resultado da interação da radiação gama com as moléculas do ar.

Centenas de milhares de partículas secundárias são criadas em cada um desses "chuveiros", e cada uma delas produz um pequeno facho de luz azul ao atravessar a atmosfera em velocidades próximas à velocidade da luz (300 mil km/s). A todo momento, sem que notemos, nossos corpos são atravessados por essas partículas.

Essa luz azulada, fraca e breve se chama luz Cherenkov, em homenagem ao físico russo Pavel Cherenkov (1904-90), ganhador do Nobel de 1958 por sua descoberta.

Imperceptível ao olho humano, ela pode ser observada com a ajuda de equipamentos sofisticados e ultrassensíveis denominados telescópios Cherenkov, que lembram grandes antenas parabólicas, mas formadas de espelhos.

O maior observatório gama do mundo, o CTA (sigla em inglês para Rede de Telescópios Cherenkov), começou a ser erguido neste ano em La Palma, nas Ilhas Canárias.

O Brasil participa da construção do primeiro telescópio-protótipo em instalação em La Palma por meio de projeto desenvolvido no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), instituto de pesquisas do governo federal no Rio.

Depois de La Palma, o CTA irá instalar telescópios também nos Andes chilenos. O total de equipamentos em funcionamento nos hemisférios Norte e Sul girará em torno de cem. Seu objetivo é esquadrinhar o céu atrás das mais altas descargas de energia já aferidas.

O CTA deverá ser concluído no início da próxima década, e a significativa participação brasileira no projeto inclui instituições de São Paulo, Paraná e Minas Gerais.

FONTES DE ENERGIA

Quando estiver completamente operacional, o CTA será dez vezes mais potente do que qualquer observatório gama existente hoje. Seus rastreamentos devem expandir o catálogo de objetos emissores desse tipo de radiação das aproximadamente 200 fontes agora conhecidas para mais de mil, dentro e fora da Via Láctea .

Mais de mil cientistas e engenheiros trabalham no projeto CTA, e há razões suficientes para justificar o entusiasmo da comunidade astronômica pela área. Na última década, a astronomia de raios gama atingiu sua maturidade e protagonizou importantes descobertas da astrofísica de altas energias.

Uma das primeiras foi o registro da explosão do blazar PKS 2155-304, em 28 de julho de 2006 –à época, eu estava prestes a iniciar meu doutorado e participava, pela primeira vez, de observações nos telescópios H.E.S.S., no deserto da Namíbia.

Blazares estão entre os corpos mais energéticos do cosmo, e o PKS 2155, em particular, é um dos mais brilhantes blazares conhecidos.

Os núcleos desses objetos são formados por um enorme buraco negro central, cuja massa (toda ela concentrada em uma região de mais ou menos o tamanho do Sistema Solar) é equivalente à soma daquela de centenas de milhões de estrelas como o Sol.

Ao devorar a matéria que a circunda, em forma de gás ou estrelas vizinhas, essa máquina infernal produz uma quantidade de luz tão intensa que seu brilho é similar ao de todas as estrelas da Via Láctea reunidas.

Tudo isso, por si só, é impressionante. Mas aquele evento registrado na noite de 28 de julho superou o que se imaginava possível para essas fontes: em menos de cinco minutos, a radiação gama daquele blazar aumentou em quase 30 vezes, o que equivale à liberação da energia de mais de 100 mil Sóis nesse curto espaço de tempo –e em uma região relativamente diminuta do cosmo, menor que o Sistema Solar.

Mais de dez anos depois desse evento cataclísmico, especialistas ainda debatem que mecanismo seria responsável por tamanha produção de energia.

No entanto, de lá para cá, o registro de eventos como o PKS 2155-304 tornou-se comum, a ponto de o recorde de brilho ter sido batido. Em dezembro de 2009, o blazar 3C 454.3 –batizado de "Crazy Diamond" (diamante louco), em alusão à música da banda de rock britânica Pink Floyd– tornou-se, por breve período, o objeto mais brilhante do céu em raios gama.

DESCOBERTA

Diariamente, satélites como o Fermi detectam explosões de raios gama de brilho semelhante, cuja origem, porém, são estrelas em vias de morrer. Esses eventos deixam como resultado a criação de um novo buraco negro. Em termos de energia, tais fenômenos são os mais intensos do cosmo desde o Big Bang, o "nascimento" do Universo, há 13,8 bilhões de anos.

O mesmo satélite Fermi descobriu recentemente duas estruturas gigantes, localizadas ao norte e ao sul do centro da Via Láctea. Batizadas de "bolhas de Fermi", elas emitem intensa radiação gama, sendo, porém, praticamente invisíveis em outras faixas do espectro eletromagnético.

A teoria mais provável é a de que esses objetos sejam enormes reservatórios de raios cósmicos (elétrons, prótons e núcleos atômicos ultraenergéticos), o registro "fóssil" de um período no qual o buraco negro no centro de nossa galáxia estava ativo, dezenas de milhões de anos atrás.

A energia liberada em eventos como esse tem o potencial de influenciar e alterar a evolução da galáxia e do cosmo ao seu redor, mostrando-nos uma nova face do Universo.

Cientistas especulam inclusive que os raios gama e raios cósmicos podem ter sido importantes para o surgimento e a evolução da vida em nosso planeta, ao fornecer, por certo intervalo de tempo, uma dose extra de energia que teria favorecido a bioquímica primordial e as mutações genéticas que levam à biodiversidade.

Essa hipótese é ainda incipiente. Se tal conexão for confirmada, entretanto, seus rastros estarão escondidos precisamente nas mais energéticas fontes de raios gama do cosmo.

ULISSES BARRES DE ALMEIDA, 34, é pesquisador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas.


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