Folha de S. Paulo


Há 50 anos, canções pop fracassam na tentativa de unir o mundo

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Casal durante o festival Woodstock, realizado em uma fazenda no Estado de Nova York (EUA), em 1969
Casal durante o festival Woodstock, realizado em uma fazenda no Estado de Nova York (EUA), em 1969

Os Beatles lançaram "All You Need Is Love" na televisão 50 anos atrás, no mesmo mês em que Israel entrou em guerra com os países árabes vizinhos, a China testou sua primeira bomba de hidrogênio e quase 500 mil soldados americanos estavam estacionados no Vietnã.

Eles usaram roupas coloridas e tocaram sentados no meio de um grupo de pessoas segurando cartazes com o título da canção em várias línguas. Paul McCartney tinha uma flor atrás da orelha. John Lennon , o autor da canção, formulou sua mensagem lírica utópica com lógica circular: "Tudo que você precisa é o amor, o amor é tudo que você precisa".

Visto desde a perspectiva de seu cinquentenário, o prospecto de Lennon para um mundo melhor não envelheceu bem. As relações árabe-israelenses continuam turbulentas, a China hoje possui cerca de 260 ogivas nucleares e as guerras americanas persistiram. Mas o sentimento que animou a canção ainda possui o poder de inspirar. "Love Trumps Hate" (o amor supera o ódio) diziam os cartazes erguidos em protestos contra a Presidência de Donald Trump, no ano passado. Após o ataque terrorista em seu concerto no Manchester Arena, em maio, Ariana Grande respondeu dando um show beneficente intitulado One Love Manchester. "Acho que o tipo de amor e união que vocês estão manifestando é o remédio do qual o mundo está precisando agora", ela disse à plateia.

O amor é o tema principal da música pop. Mas o amor no sentido de uma força que transcende fronteiras –um remédio para o mundo– não penetrou na linguagem do pop até 1967. Naquele ano o Conselho para o Verão do Amor foi criado no distrito de Haight-Ashbury, em San Francisco, para coordenar dezenas de milhares de jovens que chegavam à meca contracultural. Surgiu um termo de gíria para designar esses jovens que rejeitavam o mundo convencional: hippies. "All You Need Is Love", líder das paradas nos Estados Unidos e Europa quando foi lançado, era seu hino. John Lennon o enxergava como uma forma de propaganda política.

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A canção tem seus detratores. "Ela é repetitiva, sem dúvida", resmungou George Harrison quando Lennon a tocou pela primeira vez para seus colegas da banda, em um ensaio. Em sua biografia musical dos Beatles, "Revolution in the Head", Ian MacDonald a descreveu como "um trabalho propositalmente abaixo do padrão". Para os pragmáticos, os versos de Lennon simbolizam o pensamento hippie fantasioso e sem fundamento, a bobagem privilegiada típica de um roqueiro rico que, no ano em que ele os escreveu, instalou um mosaico do Terceiro Olho na piscina de sua casa em Surrey.

"Eles queriam mandar uma mensagem ao mundo", disse Brian Epstein, empresário dos Beatles, a respeito de "All You Need Is Love". Cinquenta anos mais tarde, a mensagem parece profundamente ingênua, uma relíquia esdrúxula e simpática do Verão do Amor. Mas a visão de um mundo interligado apresentada na canção na realidade ganhou relevância adicional desde que ela foi lançada.

Em 1967, havia quase 3,5 bilhões de pessoas no mundo. Hoje a população mundial é estimada em 7,5 bilhões de pessoas. Entre elas, 2 bilhões usam o Facebook e 5 bilhões usam celulares. A cada segundo são enviados 2,5 milhões de e-mails e são feitas 60 mil buscas no Google. Quase 1.500 satélites ativos estão orbitando a Terra neste momento, colhendo e transmitindo informações sobre ela.

"All You Need Is Love" assinalou um novo capítulo na colonização mundial pelas telecomunicações. A canção foi encomendada e tocada na primeira transmissão televisiva internacional ao vivo por satélite, o programa "Our World", uma coprodução de 14 países, vista por estimados 400 milhões de pessoas no dia 25 de junho de 1967.

Os Beatles foram mostrados tocando "All You Need Is Love" no estúdio Abbey Road, em Londres. Segundo o escritor Barry Miles, que estava presente no estúdio durante a transmissão, Lennon optou por uma letra o mais simples possível, pensando nos espectadores que não falavam inglês. Ele e seus colegas de banda, todos trajando roupas psicodélicas, foram acompanhados por um grupo de cordas e madeiras orquestrais, com todos os músicos usando os trajes negros formais tradicionais. Dentro do espírito ecumênico do projeto, as esferas opostas do rock e da música clássica foram reunidas. A canção começa com um trechinho da "Marselhesa" [o hino francês].

O MUNDO TODO

Quatro satélites transmitiram "Our World" a 24 países. Dois anos mais tarde, a mesma tecnologia permitiu que imagens do pouso na Lua fossem transmitidas ao vivo para residências em todo o mundo, em um evento de massas acompanhado simultaneamente por espectadores de todas as raças, religiões e nacionalidades.

Contrariando os mitos sobre os anos 1960, não foi preciso ingerir LSD para viver as possibilidades de ampliação da mente próprias dessa era. Bastava ligar a televisão. "Nosso mundo é envolto por um cinturão de televisores", disse o apresentador australiano de "Our World", James Dibble, no programa, tendo antes citado Puck de "Sonho de Uma Noite de Verão": "Colocarei um cinturão em volta da Terra em 40 minutos".

O circundamento do mundo pelas telecomunicações vem sendo acompanhado por esforços conscientes para promover uma identidade global. Em 1948, as Nações Unidas publicaram sua Declaração Universal dos Direitos Humanos, um documento de referência que estabeleceu um conjunto fundamental de valores humanos compartilhados.

Em 1959, a ONU promoveu o Ano Mundial dos Refugiados, o primeiro em um calendário cada vez mais lotado de comemorações internacionais cada vez mais espúrias. Entre elas, hoje figuram o Dia Internacional da Felicidade (20 de março), o Dia Internacional do Esporte para o Desenvolvimento e a Paz (6 de abril) e o Dia Mundial do Atum (2 de maio), quando, presume-se o cidadão global responsável se nega por questão de princípio a comer uma salada niçoise.

A música pop tem estado na vanguarda do movimento cultural por um mundo unido. Em 1960, o pioneiro cantor soul Sam Cooke criou o gabarito seguido por muitos com "(What a) Wonderful World", em que saber que se ama e que se é amado faz do mundo um lugar maravilhoso. Em 1967, Louis Armstrong expandiu a perspectiva com "What a Wonderful World", um panegírico à natureza lançado no mesmo ano que "All You Need Is Love".

Nos anos 1970 o hino ao mundo unido estava de vento em popa. "Eu queria construir uma casa para o mundo/ e mobiliar a casa com amor", cantaram The New Seekers em seu sucesso de 1971 "I'd Like to Teach the World to Sing (In Perfect Harmony)", com olhos e dentes brilhando com espírito amigável levemente amalucado.

"Um amor, um coração/ vamos ficar juntos e nos sentir bem", cantou Bob Marley com The Wailers em "One Love/People Get Ready", de 1977. Não eram apenas hippies que se rendiam à atração da mensagem "vamos todos nos dar as mãos e nos unir". "Um mundo só! Seja bem-vindo a ele/ Um mundo só! Não o maltrate", foi o urro do speed metal do Anthrax em "One World", de 1987.

O sentimento provavelmente chegou ao auge em meados da década de 1980, com o lançamento da canção "Do They Know It's Christmas?", single do Band Aid lançado em 1984 para fins beneficentes –ajudar a aliviar a fome na Etiópia.

O organizador da campanha, Bob Geldof, explicou: "Eu quis fazer alguma coisa que pudesse ser cantada em todo o mundo, como 'All You Need Is Love'." Sua recordação de ter assistido ao "Our World" ao vivo na TV quando criança foi a inspiração do concerto subsequente Live Aid, em 1985, visto por estimado 1,5 bilhão de pessoas em cem países.

A consciência global do pop cresceu acompanhando o crescimento de seu mercado. Quando os Beatles lançaram "All You Need Is Love", o alcance de suas turnês era limitado pela logística e a geopolítica; sua "turnê mundial" de 1964 percorreu apenas sete países. Foi apenas em 1979 que Elton John se tornou o primeiro pop star ocidental a apresentar-se na União Soviética.

Seis anos mais tarde o Wham! (duo de George Michael e Andrew Ridgeley) tocou na China. Quando Michael Jackson embarcou em sua turnê mundial HIStory, em 1996, ele pôde fazer shows em 35 países. Entre as canções do programa da turnê estava "Earth Song", uma versão distópica do gênero do hino ao mundo: "Você já parou para notar /esta Terra que chora, essas praias que lamentam?".

As condições para a música pop sem horizontes nunca estiveram mais favoráveis do que estão hoje. Graças ao digital, as canções podem ser ouvidas em qualquer lugar onde exista uma conexão com a internet: para plagiar a linguagem de "One World", nosso mundo é circundado por redes de computadores.

A ascendência anglo-americana tradicional está sendo moderada pela ascensão de outros mercados de criação musical, como Japão, Coreia e Suécia. A terceira maior empresa mundial de música por assinatura é a Tencent Music Entertainment, chinesa. Segundo a Federação Internacional da Indústria Fonográfica, a receita arrecadada com música gravada na China subiu 20% em 2016.

Os astros do afropop colaboram com seus pares ocidentais, como no sucesso de 2016 de Drake "One Dance", feito com o cantor nigeriano Wizkid. Ritmos de dancehall jamaicano aparecem em toda parte nas paradas; um exemplo disso é o sucesso mais popular deste ano, "Shape of You", de Ed Sheeran.

"Despacito", do cantor porto-riquenho Luis Fonsi, foi tocada 4,6 bilhões de vezes, um recorde mundial. No entanto, apesar do som global do pop, as canções que se dirigem à humanidade à moda grandiosa de "All You Need Is Love" têm tropeçado.

Ed Sheeran evoca o espírito de "All You Need Is Love" em seu álbum mais recente, cantando "O amor poderia transformar o mundo em um instante", mas recua no coro da canção: "Mas o que eu sei sobre isso?". "Paradise" (2011), do Coldplay, possui todos os elementos corretos de um hino, mas hesita em expressar uma visão correspondente: "Quando ela era apenas uma garota, ela esperava o mundo inteiro/ Mas ele voou para fora de seu alcance".

ENSIMESMADO

Também lançado em 2011, "Run the World (Girls)", de Beyoncé, talvez seja uma resposta sem rodeios à protagonista hesitante do Coldplay; é um tributo às mulheres que estão "tomando conta do mundo". Mas o tom é de um confronto, uma afirmação de direitos, não uma celebração de unidade. A canção atualiza os sentimentos feministas de "I Am a Woman", de Helen Reddy, que fala em nome do coletivo feminino na voz do empoderamento pessoal: "Sou uma mulher, ouça-me rugir/ em números grandes demais para ser ignorados".

O hino do empoderamento próprio tem uma história tão longa quanto a do hino de um mundo só. "My Way", de Frank Sinatra, lançado em 1969, poderia ter recebido o título alternativo de "All You Need is Self-Love" (Tudo o que você precisa é amar a si mesmo).

O Queen, sempre grandioso, juntou os dois tipos de hino em "We Are the Champions". Mas hoje em dia a promoção pessoal passa por cima do idealismo geral. "Believe", de Justin Bieber ("Não importava quantas vezes eu fosse derrubado ao chão/ Você sabia que um dia eu me levantaria outra vez") é o pop como auxílio ao fitness, incentivando o ouvinte a buscar o autoaperfeiçoamento perpétuo.

Antes de ser gravado pelos New Seekers em 1971, "I'd Like to Teach the World to Sing (In Perfect Harmony)" foi um jingle de uma campanha da Coca-Cola. E, embora o utopismo possa ter desaparecido do pop, ele ainda sobrevive na publicidade.
A Samsung empregou as mesmas imagens piegas no ano passado para vender seu telefone celular, mostrando pessoas em diferentes partes do mundo cantando as músicas que inspiram umas às outras. "Love is all you need" diz a chamada de anúncios do Amazon Echo, a "home assistant" robótica com voz de Alexa.

As empresas de tecnologia como a Apple sentem atração irresistível pelo discurso extravagante sobre aperfeiçoamento global. A Apple –que travou uma batalha prolongada com a empresa dos Beatles, a Apple Corps, sobre os direitos ao seu nome– tem a missão autoproclamada de "deixar o mundo melhor do que o encontramos".

No ano passado seu executivo-chefe, Tim Cooke, pediu aos funcionários que elegessem 20 "temas comunitários" diferentes para a empresa apoiar. Um documento interno vazado mostrou que a lista de opções era encabeçada pela aspiração de levar os produtos da empresa "a mais pessoas, por meio de novos canais e experiências". Em outras palavras, tudo o que você precisa é da Apple.

INGENUIDADE

A facilidade com que "All You Need Is Love" e o movimento mais amplo do "flower power" foram cooptados por interesses comerciais deixa claro toda a ingenuidade dos hippies. Uma interpretação menos generosa seria que os membros da geração do "baby boom" que pregaram o amor livre na década de 1960 acabaram se revelando hipócritas.

Cinquenta anos mais tarde, enquanto se aposentam com pensões confortáveis, seu período no comando do mundo deixou este nosso pobre planeta mais necessitado que nunca de muito amor.

A utopia hippie se desgastou porque paz e amor revelaram não ter força suficiente para contrapor-se à realidade brutal do poder. Três meses depois do lançamento de "All You Need Is Love", o complexo militar-industrial foi atacado por milhares de cabeludos que cercaram o Pentágono para tentar fazer o edifício levitar. Foi um ato valente de absurdismo político, mas as décadas subsequentes de guerra e gastos militares astronômicos deixam claro quem saiu ganhando.

Os hinos globais também sofrem os efeitos de uma ineficácia desmoralizadora. A própria globalização se separou do discurso libertador que a acompanhava no passado, a promessa de tirar o mundo da pobreza feita em uma reunião do G8 em 2005, seguida pelo trabalho de lobby de roqueiros partidários da visão "um mundo" como Bob Geldof e Bono, do U2.

Conflitos, pestilência e ódio não foram banidos pela visão de roqueiros ricos cantando com muito sentimento sobre como tudo poderia ser melhor se amássemos uns aos outros. Mesmo assim, apesar de tudo em que a cantoria "um-mundista" deixou a desejar, sinto saudades dela.

A música é uma poderosa mobilizadora da identidade coletiva. Refrões são feitos para serem cantados, melodias desencadeiam emoções, ritmos levam todos os corpos a se mover como um só.

O concerto One Love Manchester foi promovido para desafiar uma agressão assassina, não para promover uma utopia, mas reconheceu um impulso universalizador da música, um aspecto coletivo que os terroristas sectários do Estado Islâmico querem destruir.

Em uma era de avanços do nacionalismo, de ameaças globais crescentes e de comunicações que se multiplicam, o momento é propício para um "All You Need Is Love" do século 21.

LUDOVIC HUNTER-TILNEY é o crítico de pop do "Financial Times"

Tradução de CLARA ALLAIN


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