Folha de S. Paulo


Conflito do filme 'Dunkirk' envolveu disputa de Hitler com subordinados

Divulgação
Fionn Whitehead em cena do filme 'Dunkirk
Fionn Whitehead em cena do filme 'Dunkirk'

O filme "Dunkirk", de Christopher Nolan, está iluminando as bilheterias, com participações estelares de Mark Rylance e Kenneth Branagh. Mas um conjunto de personagens raramente é visto em cena: os alemães, que aparecem principalmente sob a forma de balas, torpedos e bombas.

No entanto, sem a decisão alemã de deixar de atacar com blindados a cabeça de ponte [fortificação temporária estabelecida em terreno inimigo, no lado oposto ao de um rio ou mar, usada como ponto de partida para avanço das tropas], a Segunda Guerra Mundial poderia ter seguido um rumo muito diferente. As tropas britânicas e francesas exaustas teriam tido dificuldade em resistir a qualquer ataque desse tipo.

Na ausência dele, contudo, mais de 330 mil soldados aliados foram retirados das praias –quase dez vezes o número que os britânicos esperavam inicialmente conseguir evacuar. Pedi por e-mail a Robert M. Citino que lançasse alguma luz sobre o comportamento da Wehrmacht [as forças armadas alemãs durante o Terceiro Reich]. Ele é autor de "The German Way of War: From the Thirty Years War to the Third Reich" (guerra à moda alemã: da Guerra dos Trinta Anos ao Terceiro Reich) e "The Wehrmacht Retreats: Fighting a Lost War, 1943" (a Wehrmacht se retira: travando uma guerra perdida, 1943), entre outros livros, e historiador sênior da cadeira Samuel Zemurray Stone no Museu Nacional da Segunda Guerra Mundial.

*

James Gibney - Existe um consenso entre historiadores sobre a razão pela qual as forças alemãs pararam antes de chegar a Dunquerque, no dia 24 de maio?

Rob Citino - Não há um consenso e nunca haverá. Toda a sequência operacional é complexa demais, até tortuosa, e uma coisa que não ajuda é que Adolf Hitler e os próprios alemães deram explicações diferentes: terreno desfavorável, o desejo de deixar que a Luftwaffe [força aérea] destruísse a cabeça de ponte sozinha, o desejo de poupar os Panzers (as divisões de blindados), o desejo de Hitler de fechar um acordo com os britânicos, supostamente "arianos" (essa última explicação é um absurdo total). Durante a guerra e depois dela, os alemães semearam tanta confusão em torno dessa questão que é quase impossível chegar à verdade.

O que o senhor acha que foi o fator mais crítico?

É bom lembrar que a Haltbefehl ("ordem de parar") emitida por Hitler em 24 de maio não impediu os Panzers de atacar a cabeça de ponte de Dunquerque. Eles já estavam parados em virtude de uma ordem de "parar nos arredores" dada pelo comandante do Grupo dos Panzers, general Ewald von Kleist, no dia 23 de maio. Os Panzers de Kleist estavam espalhados e cansados devido à perseguição em alta velocidade pelo norte da França. Alguns dos outros comandantes do exército queriam continuar avançando. O comandante do Grupo do Exército, general Gerd von Rundstedt, apoiou Kleist, enquanto o chefe do Estado-Maior, general Franz Halder, discordou de Rundstedt e chegou a tirar o Grupo dos Panzers de seu comando. Foi uma confusão da pior espécie!

Quando Hitler foi ao front, no dia 24 de maio, parecia que o comandante que ele mais respeitava, Rundstedt, estava sendo colocado de escanteio. Parecia (e era verdade) que as decisões mais importantes estavam sendo tomadas pelos comandantes sem sequer incluir Hitler, e o Führer estava determinado a pôr um fim nisso. Essa foi a origem da "ordem de parar" dada em 24 de maio: foi uma tentativa de Hitler de reafirmar seu controle sobre os acontecimentos no front.

Alguns dias mais tarde, Hitler rescindiu sua decisão. O que havia acontecido para precipitar essa mudança de posição?

Foram dois dias mais tarde (26 de maio). Hitler se fizera ouvir. Muitos de seus comandantes estavam pedindo insistentemente que os deixasse avançar. Ele estava novamente no ponto focal do comando. As divisões de infantaria –os soldados de infantaria comuns com transportes puxados a cavalo, uma versão menor de seus antecedentes na Primeira Guerra Mundial– não avançavam nada contra as defesas britânicas, que uma semana antes tinham estado frágeis, mas agora se consolidavam.

Aviões de bombardeio da Luftwaffe estavam sendo derrubados por caças britânicos da RAF [Royal Air Force, a força aérea britânica], não obstante as declarações jactanciosas de seu chefe, Hermann Göring. Acho que a força aérea foi decisiva. Os aviões alemães tinham um percurso longo a percorrer antes de chegar ao local de combate, partindo de pistas de pouso improvisadas. Enquanto isso, a RAF, em muitos casos, só precisava atravessar o Canal da Mancha, uma distância muito mais curta, saindo de suas bases.

Até que ponto as condições meteorológicas contribuíram para que a Luftwaffe não concretizasse o plano de Göring de destruir a Força Expedicionária Britânica a partir do ar? Ou será que Göring estava apenas sob o efeito de uma "ilusão movida a ópio" quando fez essa promessa, conforme a descrição feita por Norman Ohler em seu livro "Blitzed: Drugs in the Third Reich" (entorpecido: drogas no Terceiro Reich)?

O tempo inclemente com certeza prejudicou a Luftwaffe durante a evacuação das forças britânicas, mas isso é apenas mais um sinal de quão enfraquecida e sobrecarregada a Luftwaffe já estava naquele momento. E Göring não precisava de drogas para fazer promessas tolas e declarações vangloriosas. Ele já era assim havia muito tempo. Achei o livro de Norman Ohler fascinante, mas não acredito que as drogas ou as condições do tempo expliquem o que aconteceu em Dunquerque.

Como você já observou, depois da guerra os ex-generais de Hitler redigiram relatos que os exoneram de culpa pelas decisões tomadas. Mas, imediatamente depois de Dunquerque, o alto comando alemão reconheceu como a oportunidade perdida que foi?

Os generais o reconheceram em questão de dias –até mesmo enquanto estava acontecendo. Mais tarde, muitos deles escreveram suas memórias ou concederam entrevistas em que culparam Hitler por tudo. Rundstedt e Kleist foram especialmente extremos em seu revisionismo. Na época, porém, ambos acharam que suas forças Panzer enfraquecidas precisavam de descanso e reabastecimento. É claro que em última análise o responsável foi Hitler, mas ele não foi o único responsável.

O que a decisão alemã de não avançar em Dunquerque nos revela sobre o que você chamou de "os mecanismos curiosos de hierarquia de comando e tomada de decisões do Terceiro Reich"?

Muitos estudiosos da Segunda Guerra Mundial ainda se atêm ao mito da eficiência alemã, a ideia de que o comando da Wehrmacht era infalível. Os alemães tinham a tradição de oferecer muita autonomia aos comandantes durante campanhas militares, permitindo que eles aproveitassem oportunidades que de outro modo poderiam ser perdidas.

Essa tradição foi responsável por boa parte de seus êxitos. Com frequência, porém, os comandantes alemães operavam em desacordo, o que exigia mão firme no leme. Virtualmente, todos os "erros graves" atribuídos a Hitler na Segunda Guerra Mundial nasceram de um conflito dentro do oficialato alemão, algo que apenas Hitler tinha a autoridade necessária para resolver.

O que aconteceu em Dunquerque entre Hitler e seus generais teve algum impacto sobre as decisões alemãs tomadas depois disso?

Não. Eles tiverem que passar pelo mesmo suplício novamente 18 meses mais tarde, durante o trajeto a Moscou. No final de novembro de 1941, virtualmente todos os comandantes de campo alemães na Operação Barbarossa estavam travando uma espécie de guerra particular, avançando em todas as direções ao mesmo tempo, numa confusão amorfa e caótica. O preço seria a grande contraofensiva soviética diante de Moscou em dezembro, que quase destruiu o exército alemão por completo. Dessa vez, Hitler reagiu não "intervindo", mas promovendo uma demissão em massa de seus generais e assumindo sozinho o comando supremo do Exército. Algumas pessoas nunca aprendem.

Graças a Deus por isso. Mas chega de realidade histórica. Você acaba de assistir ao filme. O que achou?

É impressionante. "Dunkirk" mostra aspectos da experiência humana da guerra –a matança quase anônima e aleatória, o caos, a confusão–, mas também apresenta um argumento muito mais direcionado sobre a natureza da guerra moderna, a interação ar/mar/terra. E, como historiador militar alemão, eu diria que o filme oferece a melhor visão de um ataque com bombardeiros Stuka por volta de 1940 que já vi.

JAMES GIBNEY escreve editoriais para o Bloomberg View sobre assuntos internacionais. Ele foi editor de especiais na "Atlantic", vice-editor da página de opinião e editoriais do "New York Times" e editor-executivo da revista "Foreign Policy". Foi assessor de assuntos internacionais e redator de discursos do secretário de Estado Warren Christopher, do assessor de Segurança Nacional Anthony Lake e do presidente Bill Clinton.

Tradução de CLARA ALLAIN


Endereço da página: