Folha de S. Paulo


Flip sempre corre o risco de trocar o debate aprofundado pelo oba-oba

RESUMO O autor, ex-curador da Flip, diz que a preocupação em atender ao interesse de certo público por anedotas espirituosas por vezes afasta o evento dos debates aprofundados. Também discute se a escalação de escritores de 2017, com número expressivo de negros e mulheres, constitui outra concessão a expectativas extraliterárias.

Keiny Andrade - 3.jul.2016/Folhapress
Público durante mesa da Flip do ano passado em que os convidados foram reunidos para lerem trechos de livros que levariam para ilha deserta
Público durante mesa da Flip do ano passado em que convidados liam trechos de seus livros preferidos

Às vésperas da mais singular das edições da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), podem surgir várias perguntas sobre as razões das mudanças em sua estrutura e no perfil da programação. Ao mesmo tempo, alguém há de indagar qual a relevância de especular sobre motivos e objetivos das alterações de um evento privado, que não precisa prestar contas a ninguém.

Se é válido o argumento de que a Flip se vale de verbas públicas, oriundas de leis de incentivo ou renúncia fiscal, e que isso impõe justificativas à sociedade, ele se aplica à quase totalidade dos empreendimentos do gênero e nos reconduz ao infindável (e necessário) debate sobre uma política cultural que transferiu sua responsabilidade para a iniciativa privada, com virtudes e distorções.

Tais distorções, diga-se logo, não incluem a Flip, que, no entanto, responde à sociedade de maneira bem característica de um tempo em que expressões como "responsabilidade social" ou "impacto ambiental" passaram a integrar os ativos de empresas e instituições.

Assim, importa discutir as alterações da edição de 2017 tanto porque, desde sua criação, a Flip modificou o modo de se realizarem encontros literários no Brasil quanto porque sua programação e a dinâmica de suas mesas são obrigadas a lidar com expectativas extraliterárias, que também são traços da sociedade e do espírito do tempo.

A festa de Paraty é o mais importante evento do gênero no Brasil e deu origem a uma infinidade de outros, como Fliporto (Olinda), Fórum das Letras de Ouro Preto, Litercultura (Curitiba), Festival da Mantiqueira e Pauliceia Literária.

(Aqui, diga-se que fui curador do Pauliceia e sou do Litercultura, assim como fui curador da Flip em 2011, dado importante para que o leitor ponha estes comentários na perspectiva de alguém que se inclui naquilo sobre o que reflete.)

Nenhum desses festivais conseguiu reunir o número de autores de prestígio (incluindo diversos agraciados com o Nobel de Literatura) que a Flip trouxe ao Brasil em suas 14 edições. E só ela entra no circuito dos grandes eventos literários internacionais.

Ao mesmo tempo, a Casa Azul (responsável pela Flip) tem a preocupação de controlar o impacto urbanístico e ambiental do evento, desenvolvendo ações para amenizar o efeito da superpopulação momentânea e integrar a população local.

Tudo somado, temos um encontro que transformou o formato dos acontecimentos culturais no Brasil, que o fez respondendo a exigências de responsabilidade e inclusão social (para enveredar pelo jargão das leis de incentivo) e que enfrenta contradições características de um país sempre às voltas com seus abismos sociais.

MPB DAS LETRAS

Costumo dizer (e já o escrevi para o blog da própria Flip) que o evento de Paraty representa para o circuito da literatura aquilo que a música popular e, em especial, a MPB significam para o musical.

Um pouco à maneira dos festivais de música popular ou rock, a Flip cria um deslocamento no espaço, uma suspensão no tempo e uma convivência coletiva coerentes com um evento que se apresenta como "festa literária".

Seus frequentadores não raro conseguem (ou podem) comprar ingresso para apenas uma ou duas mesas, mas se comprazem com a atmosfera das ruas, restaurantes e bares de Paraty.

Essa experiência utópica de estar num lugar onde se respira cultura e literatura quase nos faz esquecer que, para estar ali, há que pagar a cara hospedagem e gozar do privilégio de não precisar trabalhar nos dias úteis do evento.

O corte social e econômico brasileiro se evidencia na separação entre quem aproveita plenamente a programação literária da Flip e aqueles que buscam sobretudo viver uma experiência de convívio nesse Eldorado das letras.

Outro paralelo: diferentemente da música erudita –na qual as funções do compositor e do intérprete andam perfeitamente separadas–, no registro popular encontramos uma influência muito maior da performance do autor sobre a apreciação de sua obra.

Na Flip, produz-se algo semelhante: a ênfase está na presença física e na performance do escritor, que atrai um público que, mesmo tendo lido sua obra, avalia o sucesso de determinada mesa pela capacidade de entreter.

EUFORIA

Ocorre que, se a MPB corresponde ao ideologema da sensualidade miscigenada (mesmo não se restringindo a isso), se o cancioneiro nacional conseguiu a proeza de unificar a sensibilidade do país (em detrimento de uma expressividade que assinale as fraturas de sua suposta identidade), poucos escritores se harmonizam esse "ethos" eufórico, unificador e identitário que prevalece no espírito festivo e solar da Flip.

Vale lembrar que a participação de um escritor tão assombroso quanto circunspecto como J.M. Coetzee, na Flip de 2007, foi considerada decepcionante por público e imprensa –mostrando claramente a expectativa "performática".

O risco inerente a tal anseio é o de haver mesas em que escritores e mediadores se sintam compelidos a direcionar a conversa de modo a produzir risos e aplausos.

Isso explica que Chico Buarque, no ano de publicação de "Leite Derramado" (2009), tenha participado de um encontro que, a todo momento interrompido pelo frenesi de tietes, não deixou tempo para abordar a relação entre esse romance, atravessado pela questão racial brasileira, e a obra de seu pai, o sociólogo Sérgio Buarque de Holanda (1902-82).

A explicação para o tom demasiado leve de uma mesa como essa é justamente a de que a alegria reinante na Tenda dos Autores inibe a função crítica, a de que parte da plateia (desrespeitando uma maioria interessada naquilo que a literatura tem de problematizador e erudito) rechaça com muxoxos de impaciência e até assobios qualquer tentativa de ir além do anedotário biográfico.

São vários os casos de escritores considerados enfadonhos e de mediadores tachados de intelectuais (como se fosse um insulto) por uma parcela do público que vive na Flip uma espécie de dessublimação de ressentimentos antiacadêmicos por meio de uma reverência espalhafatosa à personalidade do autor –que assim fica mais próximo do amistoso senso comum.

Obviamente, não se pode imputar à Flip a frivolidade de parte de seu público, assim como não se culpa um time pela truculência de uma minoria de "hooligans".

Mas é fato que a modalidade da festa literária, cujo mérito inequívoco foi nos aproximar da figura do escritor, do artista ou do intelectual, pode ter por efeito colateral transformá-lo num astro pop, cuja produção é consumida no tempo de uma canção –bem diferente do tempo lento da leitura.

PÚBLICO CURADOR

Agora, assistimos a mudanças na Flip que se devem, sobretudo, a uma crise econômica sem precedentes, mas que podem significar tanto uma reação às armadilhas do espírito celebratório quanto uma outra forma de adequar critérios literários e curatoriais às demandas da opinião pública, num país crispado ideologicamente.

No caso, demandas por maior representatividade étnica, social e de gênero na programação, na esteira das críticas (despropositadas, por sinal) que a Flip sofreu no ano passado, quando, embora tivesse uma mulher como homenageada (a poeta carioca Ana Cristina Cesar), foi bombardeada por alocar as autoras convidadas em mesas de pouca visibilidade.

O deslocamento da Tenda dos Autores para a igreja matriz pode até ser motivado por razões orçamentárias, mas propicia um evento mais próximo das raízes históricas e comunitárias da cidade, remetendo simbolicamente a um tempo anterior à espetacularização que atingiu todo o circuito das artes –até mesmo a literatura, menos espetacular das linguagens artísticas.

Da mesma maneira, a opção por autores que atendem claramente a um viés político (há na relação vários negros, representantes de povos indígenas e nomes que estiveram em zonas conflagradas ou que abordam episódios históricos traumáticos) dialoga de forma coerente com a escolha de Lima Barreto como homenageado.

Mas talvez a decisão mais simbólica da curadoria de Joselia Aguiar seja a escolha do show de abertura. Não mais se tratará de um espetáculo de música popular, segundo a tradição, mas da "Suíte Policarpo", obra inspirada no romance "Triste Fim de Policarpo Quaresma", de Barreto, e composta por André Mehmari.

Reconhecido no campo da música instrumental, Mehmari costuma enveredar pelo registro erudito numa chave eclética, proporcionando uma transição palatável para aquela que pode ser a menos festiva e, por isso mesmo, a mais consistente das edições da Flip.

MANUEL DA COSTA PINTO, 50, mestre em teoria literária e literatura comparada, é colunista da Folha.


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