Folha de S. Paulo


João Gilberto Noll valorizava o lado coletivo, solidário da literatura

RESUMO A partir da figura de João Gilberto Noll, morto em março , autor debate a imagem de solidão associada ao papel dos escritores. No caso do premiado romancista gaúcho, destaca a participação em oficinas e festivais, como a indicar não um isolamento completo, mas um retiro com a comunidade interessada em literatura.

Rogério Cassimiro - 4.jul.2008/Folhapress
João Gilberto Noll durante leitura na Flip, em Paraty, em 2008
João Gilberto Noll durante leitura na Flip, em Paraty, em 2008

A morte precoce de João Gilberto Noll (1946-2017) no fim de março provocou uma onda de artigos em sua lembrança. O escritor apresentava boa saúde, e foi encontrado em seu apartamento graças à oficina literária que ministrava, pois os alunos sentiram sua ausência naquela terça-feira (28) e a comunicaram à família.

Morreu sozinho, assim como nós, seus leitores, também morreremos. O mero fato de ser aguardado na Aldeia, centro cultural onde ocorria a oficina, porém, indica que ele não vivia tão só, ao menos não o tempo todo, o que fere a carapaça de recluso colada à sua figura.

Em 30 de março, o escritor Daniel Galera publicou uma crônica no jornal "Zero Hora" na qual evocava a condição solitária do romancista gaúcho. Após encontrá-lo por acaso no meio da tarde em um café, "sozinho em uma mesa, com um abismo metafísico em torno de si", ambos terminaram por assistir lado a lado a um filme de John Cassavetes.

De emoção contida, o texto de Galera recorda traços de Noll que de início poderiam reforçar lugares-comuns relacionados à natureza da escrita como atividade isolada e, igualmente, do escritor como uma espécie de anacoreta.

A imagem da solidão incondicional do papel do escritor tem suas origens no ultrarromantismo de Lord Byron (1788-1824) & cia. e parece anacrônica diante da atual demanda de festivais literários e turnês de lançamentos de livros que incluem entrevistas, palestras e apresentação em talk shows.

A própria noção de oficina literária inspira coletividade solidária em torno da criação, oposta ao solipsismo criativo vinculado ao ofício de escrever. Tais espaços de compartilhamento nunca foram tão abundantes como hoje.

Noll dava aulas havia mais de 20 anos. Talvez levado por um desejo juvenil de atuar (quis ser ator e estudou piano), também explorou sua idiossincrática desenvoltura na interpretação de textos em palcos como os do Itaú Cultural de São Paulo e da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty).

QUEM É SOLITÁRIO?

Resta saber, portanto, até onde a postura do autor se confundia –ou era confundida– à de seu protagonista peregrino e anônimo, que o escritor chamava de "esse homem".

Em entrevista (cito de memória), Milton Hatoum afirmou que a situação ideal para qualquer escritor seria a de cometer um crime na Suíça e ser aprisionado num dos presídios impolutos daquele país: com três refeições diárias e isolamento, não teria mais nada a fazer senão escrever.

Franz Kafka (1883-1924) vai além numa carta destinada a sua noiva Felice Bauer (1887-1960), sugerindo que o escritor, ao encontrar no encarceramento sua intrínseca condição, deveria inclusive se negar ao passeio regular no pátio, ou somente caminhar ao longo de um corredor sem janelas para evitar a distração simbolizada pela paisagem.

O aprisionamento como fortaleza marca a obra do escritor tcheco, como em "O Castelo", e antecipa aspectos literários do gaúcho.

A carreira de Noll foi extraordinariamente bem-sucedida, e resultou na publicação –sintomática desse êxito, aos precoces 51 anos de idade– de seus "Romances e Contos Reunidos" pela Companhia das Letras em 1997; ademais, foi o maior ganhador do Prêmio Jabuti (cinco vezes), além de bolsista da Fundação Guggenheim, professor convidado da Universidade da Califórnia em Berkeley e escritor residente do King's College, em Londres. No fim dos anos 1990, teve dois romances traduzidos na Inglaterra por David Treece.

No entanto, em 2003, Noll se afastou da prestigiosa editora paulista e iniciou um périplo por casas hoje extintas, como Francis e W11, até regressar ao grande circuito com o romance "Acenos e Afagos", publicado em 2008 pela Record.

Mas não se eximiu de sua predisposição comunitária diante da escrita e da leitura, como já sugeria o expressivo número de dedicatórias esparramadas nos oito títulos de sua obra reunida, impensáveis 36 nomes de amigos e leitores, algo inusual para qualquer escritor, circunspecto ou não.

A propósito, em sua crônica, Daniel Galera mencionou o seguinte episódio: "Uma vez, quando me enviou o manuscrito de 'Berkeley em Bellagio' [publicado em 2002] para uma leitura crítica, minha demora de alguns dias para responder resultou numa mensagem cheia de ira e impropérios".

Algo semelhante aconteceu comigo, após Noll me despachar o mesmo original. Eu não vivia lá o meu auge pessoal, a resposta tardou mais que o exigido pela etiqueta e ademais deve ter lhe parecido meio burocrática, o que resultou não em xingamentos, mas em pragas dirigidas a mim e a meus descendentes, "ad aeternitatem", treplicadas com uma enxurrada de ofensas de minha parte.

Aqueles ainda eram tempos de ingenuidade em relação ao uso nocivo da correspondência eletrônica, e fomos vítimas dessa urgência e do peso de chumbo que a palavra escrita pode ter, se disparada sob a fervura dos eventos.

RECUSA

Se a chateação com Galera terminou com um pedido de desculpas de Noll, a nossa se resolveria de modo inesperado em 2011, quando nos hospedávamos no mesmo hotel de Buenos Aires, a convite do Filba (festival de literatura): no café da manhã, ele se sentou em minha mesa, e conversamos como se aqueles constrangimentos não tivessem ocorrido quase dez anos antes, sem qualquer falsidade de sentimentos.

Relato a refrega íntima não para ilustrar o convívio belicista entre escritores, e sim para comprovar a generosidade e interesse genuínos de Noll em relação ao trabalho literário em sua manifestação coletiva –ou à aplicação do texto como instrumento de aproximação e calorosa maneira de fugir à introspecção, estabelecendo-se o diálogo sob a ética da leitura, mesmo que sujeito a acidentes.

Vale lembrar que Galera e eu éramos novatos em 2002, e nossa opinião talvez de pouco valesse a um escritor tão experiente. Somados os fatores, é razoável considerar que o "caso" literário de Noll seja de evidente recusa –aos acenos e afagos do mercado, às armadilhas da consagração prematura e mesmo da proliferação acrítica da própria obra, ao publicar demais–, e não só de reclusão.

"O encarceramento e o exílio são as duas imagens de espelho entre as quais os protagonistas de Noll se debatem na luta para se reconhecer a si mesmos", assevera David Treece, em sua introdução a "Romances e Contos Reunidos".

Ainda segundo o tradutor, "não é por nada, então, que a penitenciária, a cela de anonimato na qual se recolhe o condenado por inconformidade às regras do mundo é um elemento onipresente em seus cenários ficcionais". O encarceramento não se resumiria ao correcional, abrangendo a recusa às instituições familiares, militares, hospitalares e a todo tipo de normalização social imposta.

ESPAÇO EXTERIOR

A oscilação de uma carreira que no princípio parecia impulsionada a jato –dada a frequência de láureas e títulos, em contraste com a rarefação de livros nos últimos anos– resultou em certo movimento em direção ao espaço exterior.

Com as oficinas e debates já citados, mas principalmente por meio de leituras públicas nas quais sua atuação causaria perplexidade, Noll passou a compartilhar seu conhecimento e a explorar sua dicção tão pessoal sob outras formas.

Tuítes necrológicos do escritor Michel Laub recordaram essas performances: "No fim da vida, Noll se reinventou não nos textos (que são fiéis a si mesmos desde os 1980), mas no modo de ler", pois "[as performances] mudam o modo como lembramos esses textos, em vários sentidos que tornam a obra como um todo ainda mais original".

Não há necessidade de descrever essas leituras, já que podem ser vistas no YouTube (veja abaixo). Contudo, o efeito inaugural de ouvi-las ao vivo exige a tentativa: ao adotar uma voz de idoso, Noll se expunha, na abertura da apresentação, ao escrutínio de uma plateia desabituada a ver autores que proponham um enfoque interpretativo aos próprios textos, ainda mais tão radical.

João Gilberto Noll - Solidão Continental

Com isso, estabelecia-se um clima incômodo no ambiente que poderia resultar em pura e simples rejeição, com risos discretos ou a deserção dos mais impacientes.

A desistência de enveredar pela música e pela atuação conduziu Noll à literatura, "a arte solitária por excelência", como descreveu a José Castello. Vale perguntar se o seu regresso à atuação teatral nos últimos anos não simbolizaria a reunião definitiva dessas inclinações de juventude com a sua própria literatura –agora enfim escrita–, através da performance.

Agregando-se outros dados biográficos sempre lembrados pelo autor, como a predisposição aos ritos católicos de seu passado de coroinha de colégio marista, é possível conjecturar, como sugeriu Laub, que Noll criou uma espécie de diapasão para a leitura de sua prosa marcada pelas inflexões da oralidade, ensinando-nos como deve ser lida.

Definitivamente, não são os prêmios ou a celebridade que resolverão o problema central e permanente de qualquer escritor, que é a condenação à dúvida eterna acerca do real valor daquilo que produz.

Em um tempo de forte incredulidade e ceticismo como o atual, no qual balança a crença nos processos educacionais e na arte, a convicção exibida por Noll da importância solidária das oficinas literárias, assim como das apresentações de escritores em palcos de festivais, retirou de sua própria figura o estigma de anacoreta.

Pelo contrário, Noll mais lembrava um cenobita reunido em torno da cada vez menor comunidade interessada em literatura, em um gesto de resistência à indigência do presente que, ao mesmo tempo, abastece-nos de alimento espiritual para nossa tragédia futura.

JOCA REINERS TERRON, 49, escritor, é autor de "Noite Dentro da Noite" (Companhia das Letras).


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