Folha de S. Paulo


Dois escritores negros e uma vila na Suíça que só conhecia homens brancos

Divulgação
O escritor norte-americano Teju Cole
O escritor Teju Cole, que refez a viagem de James Baldwin a Leukerbad, em entrevista na Flip 2012

RESUMO Em 1951, o escritor americano James Baldwin visitou uma vila suíça que nunca vira um negro. A experiência rendeu um ensaio. Seis décadas depois, outro autor negro, Teju Cole, refez a viagem, que inspirou novo texto. A percepção de cada um deles é diferente, mas não o "racismo atmosférico" de que são alvo.

*

Em 1951, o ativista norte-americano James Baldwin (1924-1987) foi o primeiro negro a pisar em Leukerbad, vilarejo da Suíça. Lá, encontrou um racismo muito diferente daquele com que tinha de se haver nos Estados Unidos -país de herança escravagista que, àquela época, ainda segregava as pessoas pela cor da pele em banheiros, cafés e onde mais fosse possível.

Baldwin foi recebido como um alienígena. Alguns moradores de Leukerbad achavam que o cabelo do visitante tinha cor de alcatrão e textura de arame ou algodão. As crianças gritavam "Neger" e ficavam orgulhosas quando conseguiam a atenção do forasteiro.

Nem tudo era inofensivo, contudo. Baldwin foi acusado de ter roubado lenha; além disso, ele notava em certos olhares alguns traços que descreveu como "aquela maldade peculiar, intencional, paranoica, que às vezes se surpreende nos olhos de homens brancos americanos quando, passeando no domingo com a namorada, eles veem um negro se aproximar".

De forma geral, porém, era um racismo ingênuo ou espantado, que desumanizava o negro, visto como curiosidade ambulante.

Mesmo naquele vilarejo isolado e tacanho, Baldwin convencia-se de que o negro fora meramente enxertado no Ocidente.

Até aquelas pessoas provavelmente ignorantes tinham mais a ver com Dante (1265-1321), Shakespeare (1564-1616), Michelangelo (1475-1564) e Racine (1639-1699) do que ele, um negro que se tornaria líder do movimento pelos direitos civis nos EUA e um escritor aclamado.

(Um romance de Baldwin será adaptado ao cinema por Barry Jenkins, diretor do premiado "Moonlight", enquanto um manuscrito inacabado de sua autoria originou o documentário "Eu Não Sou Seu Negro", indicado ao Oscar 2017.)

"Essas pessoas não poderiam ser estranhas, do ponto de vista do poder, em nenhum lugar do mundo; na verdade, elas fizeram o mundo moderno, mesmo que não saibam disso", escreve Baldwin em "O Estranho no Vilarejo", ensaio publicado originalmente na "Harper's Magazine" em 1953.

"A catedral de Chartres [famosa por seus vitrais e localizada a sudoeste de Paris] lhes diz alguma coisa que não diz a mim, como também diria o Empire State de Nova York, se alguém aqui um dia o visse. De seus hinos e danças saíram Beethoven e Bach. Volte alguns séculos, e eles estão em plena glória -mas eu estou na África, assistindo à chegada dos conquistadores."

Alamy
Como foi criada a heterossexualidade como a conhecemos hoje --- O escritor James Baldwin criticou a definição das pessoas como hétero ou gay, dizendo que se trata de
O escritor americano James Baldwin, primeiro negro a visitar o vilarejo suíço de Leukerbad

DUBLÊ DE CORPO

Mais de 50 anos depois, o escritor nigeriano-americano Teju Cole refez a viagem de Baldwin, experiência que o inspirou a escrever o ensaio "Um Corpo Negro", para a revista americana "New Yorker". Agora a brasileira "Serrote" publica os dois textos em seu número 26, à venda em livrarias -a tradução é de Alexandre Barbosa de Souza.

Cole, que escreveu o festejado "Cidade Aberta" (Companhia das Letras, 2012), pelo qual recebeu o prêmio anual da Fundação Hemingway/PEN, sentiu-se como um dublê de corpo de Baldwin.

"Lá estava eu em Leukerbad, com o canto de Bessie Smith vindo de 1929, atravessando os anos; e sou negro como ele; e sou magro; e também tenho os dentes da frente espaçados; e não sou especialmente alto (não, escreve: baixo); e sou frio no papel e caloroso pessoalmente, a não ser quando sou justamente o contrário; e fui também um fervoroso pastor na adolescência", descreve Cole em um trecho de seu ensaio.

A despeito das semelhanças físicas e de personalidade entre os dois, o autor contemporâneo sublinha divergências fundamentais em relação a seu predecessor quanto ao apreço pelo cânone da cultura ocidental.

"Bach, tão profundamente humano, é meu patrimônio. Não sou um intruso olhando um retrato de Rembrandt. Eu me importo com essas coisas mais do que algumas pessoas brancas, assim como algumas pessoas brancas se importam mais com alguns aspectos da arte africana do que eu. Posso me opor à supremacia branca e, ainda assim, adorar arquitetura gótica. Nisso, estou com [o escritor e crítico] Ralph Ellison: 'Os valores do meu povo não são 'brancos' nem 'negros', são americanos'", escreve.

Em entrevista à Folha, Cole diz que hoje seria muito difícil concordar com as elucubrações de Baldwin a respeito do passado de brancos ("em plena glória") e negros ("na África, assistindo à chegada dos conquistadores").
Para o nigeriano-americano, a ampliação do acesso à história e à cultura negra mudou a forma como as pessoas dessa raça se veem.

"Ninguém na África estava esperando os conquistadores chegarem. Estavam ocupados construindo uma civilização, com uma rica tradição musical e de arquitetura -um pouco menos em relação à literatura, mas sofisticadas poesia e arte também", diz ele. "Descobrir que tudo isso acontecia na África foi possível graças a muita pesquisa e ativismo. É bem mais do que sabíamos nos anos 1950 [quando Baldwin redigiu seu ensaio]."

ESPLENDOR NEGRO

Além disso, a cultura negra contemporânea -que é, na realidade, mundial- está em todos os lugares. "Hoje, temos muito mais consciência e somos muito mais influenciados pela grandiosidade negra. Basta considerar tudo o que os negros realizaram nos últimos 50 anos. Se você olha para os grandes músicos, escritores e atletas, há uma sobrerrepresentação de negros entre os grandes", diz Cole na entrevista.

Depois de 63 anos, o vilarejo também mudara. Cole não era um estranho como Baldwin havia sido; os habitantes de Leukerbad já tinham visto muitos negros. Mas algo se mantinha igual: o olhar dos brancos.

"As pessoas olham em Zurique, onde estou passando o verão, assim como olham em Nova York, onde moro há 14 anos. Há olhares por toda a Europa e na Índia, e em qualquer outro lugar fora da África. O teste é ver quanto duram esses olhares, se eles se tornam olhares fixos, com que intenção ocorrem, se contêm [...] hostilidade ou zombaria, e até que ponto meus contatos, meu dinheiro ou modo de vestir me protegem nessas situações", escreve Cole.

E completa: "Ser um estranho é ser olhado. Mas ser negro é ser olhado de uma forma especial".

Segundo o escritor, essa mirada enviesada é quase universal. "Os brancos partem do pressuposto de que você não está no centro, você é periférico e, se estiver em um espaço privilegiado, você não pertence a ele. Vou a bons restaurantes, fico em hotéis sofisticados, ninguém me impede de fazer nada, mas há sempre aquele ar de 'o que você está fazendo aqui?'", diz à Folha.

Para Cole, o racismo nos EUA assume formas cada vez mais sofisticadas. Exemplos são a legislação penal -que prevê punições mais duras para usuários de crack (na maioria negros) do que para os de cocaína-, a forma de agentes policiais abordarem negros e a discriminação na compra de casas em bairros tidos como de elite.

"O racismo americano possui muitas engrenagens e já teve séculos suficientes para desenvolver uma impressionante camuflagem. É capaz de acumular sua maldade por muito tempo quase sem se mover, o tempo todo fingindo olhar para o outro lado. Como a misoginia, é atmosférico. A princípio, você não o vê. Mas depois você entende", escreve.

O escritor afirma que, hoje em dia, ninguém pode recorrer ao álibi da ignorância daquele vilarejo suíço em 1951, à desculpa de não saber de toda a opressão que sofreram e ainda sofrem os negros. "Basta se perguntar por que a prosperidade tem sido predominantemente branca, e a pobreza, negra."

PATRÍCIA CAMPOS MELLO, 42, é repórter especial da Folha.


Endereço da página:

Links no texto: