Folha de S. Paulo


Esquerda precisa desapegar de crenças e fazer avaliação honesta de anos FHC

Zé Carlos Barretta/Folhapress
SAO PAULO, SP, BRASIL, 03-07-2017, 20h00: Da esquerda para direita: Samuel Pessoa, economista, Celso Rocha de Barros, sociologo, Marcelo Coelho, mediador e Ruy Fausto, autor. Em debate sobre o livro 'Caminhos da Esquerda', lancado por Ruy Fausto na Livraria Cultura do Conjunto Nacional. (Foto: Ze Carlos Barretta/Folhapress TREINAMENTO)
Samuel Pessôa, Celso Rocha de Barros, Marcelo Coelho e Ruy Fausto, em debate sobre livro

RESUMO Autor responde a ensaio em que Marcelo Coelho sustenta que a diferença entre as gestões Lula e FHC foi o peso que cada um conferiu à distribuição de renda -uma questão de valores ("Ilustríssima", 9/7). Para Pessôa, acertos do petista emulam os do tucano, e erros derivam de mudança de rota, com rendição ao populismo.

*

Caminhos Da Esquerda - Elementos Para Uma Reconstrução
Ruy Fausto
l
Comprar

Na segunda-feira, 3 de julho, eu e Celso Rocha de Barros participamos de debate com Ruy Fausto, que lançava o livro "Caminhos da Esquerda" [Companhia das Letras, 216 págs., R$ 39,90, R$ 27,90 em e-book]. Marcelo Coelho foi o mediador do encontro.

Minha tese, desde meu debate com Fausto nas páginas da revista "piauí", nos meses de outubro, dezembro, fevereiro e março, é a seguinte: o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) foi social-democrata -em qualquer lugar do mundo, quem aumenta a carga tributária e o gasto social será caracterizado dessa forma- e não há, no desenho das políticas públicas, diferença entre FHC e Lula 1 (2003-2006), período que chamei de "Malocci" (combinação de Pedro Malan e Antonio Palocci, ministros da Fazenda dessa fase).

Coelho apresentou resumo de nosso debate na "Ilustríssima" de 9 de julho. Concordando com meus números, ele indaga: "Por que um governo como o de Fernando Henrique, apesar de suas semelhanças com Lula, não 'pareceu' tão de esquerda?".

Um governo é mais do que somente números; há que olhar os valores. Assim Coelho responde à pergunta que ele mesmo fez.

Eu, com os números, as estatísticas e a matemática, não teria me apercebido dos valores. Coelho conclui: "Os moderados sempre se confundem perto do centro; a vida política, entretanto, os afasta e os legitima conforme valores diferentes. E valores são uma coisa, números são outra".

Para documentar o ponto de vista de que valores contam, Coelho lembra entrevista de Fernando Henrique em outubro de 1996. Há duas partes no texto citado. Na primeira, o tucano expõe o desejo de superar a herança varguista. Na segunda, ele reconhece as limitações práticas e orçamentárias de incluir rapidamente toda a população brasileira no mercado de consumo.

É interessante notar que, nesses trechos, aparecem duas patologias do petismo que ajudaram a nos trazer ao quadro atual, com a pior perda de PIB per capita dos últimos 120 anos no Brasil e mais de 14 milhões de desempregados.
A primeira dessas patologias foi reviver o intervencionismo, clara herança varguista, e a segunda, tratar o Orçamento como fonte ilimitada de recursos, atitude que produziu um desequilíbrio profundo nas contas públicas.

De acordo com Coelho, FHC, embora tenha feito um governo social-democrata "stricto sensu", foi percebido como de direita ou neoliberal por causa de seu discurso ou da forma como os próprios tucanos se enxergavam ou se apresentavam para a sociedade.

Não está claro o que Coelho entende por valores. Parece-me sugerir que, para o grupo político petista, o tema da redistribuição de renda tem maior prioridade (maior valor) do que para o grupo político tucano. De alguma forma, essa característica teria sido transmitida à população ou por ela percebida, mesmo que inconscientemente.

ENGANOS

Discordo totalmente dessa resposta. Ela é elegante e sofisticada, mas equivocada; foi elaborada com frases bem construídas, mas não há evidência que a sustente. Muito pelo contrário. A constatação de que não há diferença na formulação das políticas públicas entre os governos sugere o oposto. Ambos os grupos eram igualmente avessos à desigualdade. Diante das mesmas circunstâncias de FHC, Lula não faria melhor.
Há, no entanto, diversas respostas à interessante questão de Coelho: por que FHC é visto como um governante de direita, quando de fato foi social-democrata?

Um primeiro motivo encontra-se na própria citação de Coelho. Como ele nota, Fernando Henrique não era populista e compartilhava com a população as limitações e as possibilidades do Estado.

Essa franqueza deve ter cobrado um preço de popularidade, especialmente num país em que é tão forte a atuação de uma esquerda populista, sempre disposta a demonizar plataformas mais centristas quando isso lhe convém.

O segundo motivo é natural e absolutamente esperado. O PT era -e, se não tivesse se perdido no desastrado experimento nacional-desenvolvimentista, ainda seria- o verdadeiro partido social-democrata brasileiro. Trata-se de agremiação com sólidas raízes nos movimentos sociais e sindicais. Nada mais normal que seja vista como uma legenda disposta a batalhar por políticas de esquerda.

Além disso, a esquerda e o Partido dos Trabalhadores demonizaram o governo FHC. Essa campanha ajudou a colar na administração tucana o signo da direita, quando de fato era social-democrata.

Mas, perguntaria Coelho para mim, por que motivo a demonização foi eficaz? Por que colou?

Duas razões explicam por que a pecha de governo de direita colou.

Primeiro, as circunstâncias históricas concretas com que cada uma das administrações se defrontou. Lula pôde colher os frutos de anos de arrumação de casa -inclusive da política econômica estritamente ortodoxa que praticou no primeiro mandato- e teve a fortuna do boom de commodities. Foi o governo social-democrata da época das vacas gordas.

Segundo, a capacidade ou não da sociedade de aprender com as experiências do passado.

DECEPÇÕES

O longo processo de redemocratização brasileira desde os anos 1980 nos frustrou repetidamente.

As frustrações estavam associadas a expectativas excessivamente otimistas quanto à capacidade de o novo governo solucionar problemas que estavam pendentes havia muito tempo.

O otimismo se justificava pela interpretação de que o governo (ou o regime) anterior era incompetente e pela noção, comum na América Latina e no Brasil, de que a solução da maior parte dos problemas depende de vontade política.

De acordo com essa visão, o espaço para que a política interfira nas restrições econômicas é amplo. A troca dos agentes geraria ganho significativo de renda, fruto da maior competência e da melhora na alocação da renda,
que viria como consequência da mudança política.

As esperanças eram grandes no início dos anos Fernando Henrique Cardoso. Logo nos frustramos. A percepção que todos tínhamos era a de que o governo fazia menos do que o possível e concedia ao atraso mais do que o necessário.

Essa percepção era compartilhada por todos, até por operadores de dentro do governo. Quem não se lembra de Sérgio Motta dizendo para FHC não se apequenar?

A frustração e as críticas ao governo FHC resultavam não só das grandes expectativas que não poderia satisfazer mas também do desconhecimento da sociedade quanto às restrições políticas e econômicas de um país com a nossa complexidade.

Nesse sentido, é óbvio que a experiência posterior, empregando expressão popular entre psicanalistas, ressignifica o governo FHC -ou deveria ressignificá-lo.

A constatação de que o melhor período de Lula ocorreu quando ele essencialmente reproduziu as políticas da administração anterior, tanto no plano econômico quanto nos contornos gerais da gestão política, implica -ou deveria implicar- a reavaliação do período de Fernando Henrique, bem como o reconhecimento da necessidade de lidar com as restrições.

Aprender com a experiência é exercício ainda mais natural e necessário em uma democracia muito recente. Tal criança, estamos tateando e aprendendo com a vivência.

Sociedades incapazes de processar suas experiências ficam amarradas ao passado e não avançam. Repetem compulsivamente os mesmos erros. Tome-se a Argentina como maior exemplo disso.

ARMADILHA

Essa reavaliação, no entanto, demanda elevada honestidade intelectual e, muitas vezes, é emocionalmente custosa. Precisamos nos desapegar de nossas crenças e visões de mundo e ter abertura para repensar. A esquerda tradicional não se mostra muito afeita a tais esforços. Insistir na cantilena que associa o governo FHC ao neoliberalismo impõe custos muito menores.

Daí vem a armadilha que a esquerda brasileira armou para si. Como demonizou a administração de Fernando Henrique e não consegue ressignificar esse período, não tem opção senão tentar construir novos modelos.
A experiência, entretanto, tem demonstrado que esses novos modelos são irrealizáveis e, a médio prazo, resultam, do ponto de vista do desenvolvimento social, no contrário de seu intento. Vimos isso com Dilma Rousseff (PT), com Cristina Kirchner e com o chavismo.

Essa dificuldade de ressignificação é muito bem documentada em inúmeros intelectuais e artistas que não conseguem se desapegar de seus heróis e mitos de juventude, como Fidel Castro e a ditadura cubana, e no surpreendente apoio ao chavismo por parte expressiva da dita esquerda brasileira.

Os jovens dos anos 1960 são os idosos da segunda década do século 21 sequestrados por um patético complexo de Peter Pan.

Não me parece, portanto, que esteja nos valores o ponto de distinção entre os dois grupos políticos. Apesar da maior proximidade cultural e afetiva do petismo com boa parcela da população, e a despeito da carga simbólica da biografia de Lula, a sua prática, nos bons momentos, em nada diferiu da de FHC: ambos garantiram a estabilidade econômica em meio a políticas eficazes de transferência de renda e cuidado com os mais pobres.

A diferença relevante ocorreu nos momentos de dificuldade. Fernando Henrique Cardoso reconheceu os erros e os limites da gestão pública e optou pelo ajuste. Lula e o petismo, quando da crise externa, optaram pelo populismo e pela expansão dos gastos -e a grave crise econômica que atravessamos decorre dessa escolha.

O populismo pode seduzir alguns nos momentos de bonança, quando se resume ao discurso falastrão: promete muito e se diz responsável por tudo de bom que acontece. O risco do populismo está nos períodos de dificuldade.

O falastrão não aceita a existência de restrições, não aceita que ajustes têm de ser feitos e, embriagado pelo sucesso anterior, apela ao voluntarismo para superar os problemas.

A América Latina de Perón-Kirchner, Chávez e Lula 2-Dilma conhece bem as suas lastimáveis consequências.

SAMUEL PESSÔA, 54, é físico com doutorado em economia, ambos pela USP. É pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da FGV, sócio da consultoria Reliance e colunista da Folha.


Endereço da página:

Links no texto: