Folha de S. Paulo


Por que Jane Austen ainda é tão lida, 200 anos depois de sua morte?

Duzentos anos após sua morte, Jane Austen (1775-1817) comanda um império cultural –com obras de ficção feitas por fãs, adaptações e merchandising que têm por base seus seis romances. A pergunta que se coloca é: por que ela, e não qualquer outro autor?

Franco Moretti, fundador do Laboratório Literário de Stanford, que aplica análise de dados ao estudo da ficção, afirma que determinados livros sobrevivem graças às escolhas dos leitores comuns, em um processo um pouco parecido com a evolução:

"A história literária é moldada pelo fato de que os leitores selecionam uma obra literária e a mantêm viva ao longo de gerações porque gostam de alguns de seus elementos principais".

Quais são as características que tornam Jane Austen especial? Elas são mensuráveis com dados? Será que é possível criar gráficos para registrar gênios literários?

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A escritora inglesa Jane Austen. [FSP-Mais!-04.02.96]*** NÃO UTILIZAR SEM ANTES CHECAR CRÉDITO E LEGENDA***
Retrato pintado da escritora inglesa Jane Austen

Os romances de Austen, que tiveram sucesso razoável na época de sua publicação, foram inovadores ou até revolucionários de maneiras que os contemporâneos da escritora não reconheceram completamente.

Algumas das técnicas que introduziu –ou utilizou melhor que qualquer outro autor da época– foram de tal forma incorporadas à maneira como encaramos a ficção que a impressão que temos é de que sempre estiveram presentes.

Uma coisa que os primeiros leitores de fato notaram, porém, foi o naturalismo. Diferentemente dos romances que Austen leu durante a juventude, os que ela própria escreveu não contêm elementos improváveis.

Não são ambientados em castelos italianos fantasmagóricos (em "Northanger Abbey", ela zomba desse tipo de artifício gótico); não têm personagens sequestradas por libertinos ou herdeiras de fortunas condicionadas a exigências bizarras.

Walter Scott (1771-1882), popular autor de romances históricos em sua maioria esquecidos hoje em dia, elogiou a "arte [de Jane Austen] de copiar a natureza como ela realmente é na vida comum e de apresentar ao leitor, ao invés de cenas esplêndidas de um mundo imaginário, uma representação correta e nítida daquilo que acontece diariamente à sua volta".

DADOS

Vamos tentar visualizar esse naturalismo com a ajuda de dados.

Começamos com um conjunto de 127 romances ingleses publicados entre 1710 e 1920. Utilizando uma técnica chamada "análise de componentes principais", essas obras são registradas em um gráfico bidimensional, que se baseia no vocabulário de cada livro.

A localização de cada obra no diagrama se baseia na frequência com que utiliza cada palavra da língua inglesa.

No eixo horizontal, as palavras mais à esquerda tendem a ser mais abstratas, tratando de estados de ânimo e relacionamentos sociais: "conhecido", "afeto", "conduta", "desejo", "favor", "gratidão", "indulgência", "mérito", "ressentimento" e "virtude".

Já as mais à direita dizem respeito ao mundo físico e aos sentidos: "fechado", "escuro", "vazio", "dedos", "grama", "quente", "ombro", "em pé" e "branco".

Os vocábulos abstratos são os mais antigos, e os romances de Austen, publicados entre 1811 e 1818, recorrem muito a eles –o que aproxima a autora de seus contemporâneos de escrita.

O que se revela mais intrigante é o eixo vertical do citado gráfico, que indica o grau de alinhamento dos romances analisados a um léxico medieval (porção inferior) ou, alternativamente, a um vocabulário que aluda à noção de tempo e às emoções (porção superior).

Para exemplificar: a parte de baixo é associada a palavras que lembram a peça "Macbeth" (1606), como "banquete", "contemplou", "fulminado" e "espada". O romance de aventura medieval "Ivanhoe" (1820), de Walter Scott, figura nessa porção do gráfico.

Na parte superior, Austen está praticamente sozinha, ao lado de obras como "Diary of a Nobody" (1892) e "New Grub Street" (1891).

Esse pedaço do gráfico está relacionado a uma propensão acima da média ao uso de palavras como "bastante", "realmente" e "muito" –o tipo de vocábulo que os escritores são aconselhados a evitar se quiserem criar prosas fortes. Também está ligado a marcadores temporais e estados de ânimo: "sempre", "quinzena" e "semana"; "desajeitado", "decidido", "feliz", "lamento".

Portanto, não há em Austen "cenas esplêndidas de um mundo imaginário". Porém, como observou Virginia Woolf, "de todos os grandes escritores, ela é a mais difícil de flagrar no ato da grandeza".

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Orgulho & Preconceito DVD
Jennifer Ehle e Colin Firth em adaptação da BBC para "Orgulho e Preconceito" realizada em 1995

COMPARAÇÃO

Outro estudo analisou palavras dos romances de Austen e as comparou com uma coleção de ficção britânica contemporânea e outra de ficção britânica de 1780 a 1820. Foram identificados vários aspectos singulares.

Jane Austen emprega comparativamente mais palavras relativas a mulheres –"ela", "senhorita"– e a relacionamentos familiares, como "irmã". Não chega a surpreender, considerando a temática de seus livros. Também vemos mais palavras como "contente", "respeitado" e "esperado". Isso corresponde ao eixo horizontal do gráfico citado acima.

Austen também empregava palavras intensificadoras –como "muito", "tanto"– com frequência maior que outros escritores. O estudo vinculou a utilização desses termos a uma característica crucial dos textos da escritora, algo que à primeira vista parece resistir à quantificação: a ironia.

As abordagens literárias tradicionais sempre se focaram nesse aspecto do trabalho de Jane Austen.

Como escreveu o crítico Marvin Mudrick, "as incongruências entre fingimento e essência, entre a ideia ampla e o ego inadequado". Observando as passagens em que palavras como "muito" são usadas frequentemente, constata-se não raro que o sentido declarado pode não coincidir com o sentido real –um exagero que constitui um convite sutil à dúvida.

Em um trecho de "Emma", a personagem-título e sua amiga Mrs. Weston falam sobre o encantador Frank Churchill, que a protagonista, apesar de ter acabado de conhecer, acha que deve se sentir atraído por ela:

"Mrs. Weston estava sempre disposta a declarar o quão agradável e atencioso companheiro ele era, e o quanto apreciava sua disposição para tudo. O jovem parecia ter um temperamento muito aberto, certamente era bastante alegre e vivaz. Emma não observou nada errado em suas ideias, que eram muito ajuizadas... Isso tudo era muito promissor, e, exceto pela inoportuna vaidade de ter mandado cortar o cabelo, não havia nada que o tornasse indigno da distinta honra que a imaginação de Emma lhe havia conferido. A honra, se não de amá-la, de estar bem próximo disso, salvo apenas pela indiferença da própria Emma (ela ainda mantinha a decisão de jamais se casar). A honra, em suma, de ser destinado a ela por todos os conhecidos que tinham em comum". - "Emma"

Alguém que esteja lendo o romance pela primeira vez não sabe que Frank oculta um segredo importante nem que Emma ignora os próprios sentimentos. Mas a profusão de termos intensificadores cria um senso de insistência excessiva de que nem tudo é o que aparenta ser.

A VIDA COMO ELA É

Jane Austen também fazia uso repetido de palavras como "poderia" e "deveria", indicativas de probabilidade, permissão e obrigação.

"Poderia", em seus romances, muitas vezes é acompanhado de "não" e tende a ser encontrado em palavras ou frases ligadas a pensar, perceber ou falar. Isso reflete o desafio enfrentado pelos personagens da escritora, especialmente suas heroínas, de enxergar as coisas como elas realmente são e em falar o que realmente pensam.

A ingênua Catherine de "Northanger Abbey" enxerga o mundo através do prisma de seus amados romances góticos, fazendo uma leitura equivocada da realidade.

Anne Elliot, de "Persuasão", quando volta a ter contato com o ex-noivo que ainda ama, precisa descobrir se ele ainda guarda algum sentimento por ela, mas não consegue expressar nem os próprios sentimentos.

"Deveria" tende a ser encontrado perto de "ser" e "ter", em construções frequentemente usadas nas especulações das personagens sobre os verdadeiros pensamentos e emoções dos outros:

"Ela sentiu que deveria haver algum problema. A mudança era inequívoca. A diferença entre sua atitude atual e a que havia apresentado no Salão Octagonal era grande demais". - "Persuasão"

Essa preocupação está no cerne do trabalho de Austen: o que acontece por trás do verniz exigido pela cortesia?

Esses termos singulares, agrupamentos de palavras e construções gramaticais ressaltam o que lhe interessava como escritora: os estados de ânimo e sentimento e os esforços incessantes de suas personagens em compreender a si mesmas e aos outros.

A natureza humana (ao lado da ação do tempo) é o verdadeiro tema de todos os romances, mesmo daqueles cheios de fantasmas, piratas, órfãos corajosos ou trajetórias até a guilhotina.

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Ao omitir os elementos fantásticos e dramáticos que alimentam as tramas de romances mais convencionais, tanto os de seu tempo quanto os do nosso, Austen mantém um foco de alta precisão.

Isso aponta para as características tão cruciais para sua longevidade na luta darwiniana pela imortalidade literária: inteligência emocional aguda e uma rara habilidade de apresentá-la em histórias que nos entretêm ao mesmo tempo em que nos instruem.

Austen parece enxergar as pessoas com tanta clareza que nós, seus leitores, não podemos deixar de melhorar nossa percepção também.

JOSH KATZ é editor gráfico do "The New York Times"

KATHLEEN A. FLYNN é editora do "The Upshot" no "The New York Times"

Tradução de CLARA ALLAIN


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