Folha de S. Paulo


Best-seller chinês é traduzido pela primeira vez no Brasil; leia trecho

Grace Zhang

SOBRE O TEXTO Este trecho faz parte do romance "O Garoto do Riquixá", escrito nos anos 1930, best-seller nos Estados Unidos nos anos 1940 e primeiro livro do autor chinês a ser traduzido no Brasil. A Estação Liberdade lança o título neste mês.

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Como estava feliz, sentia-se mais corajoso. Desde que comprara o riquixá, Xiangzi corria ainda mais depressa. Claro que com a atenção redobrada, devido ao fato de o veículo ser dele, mas caso não corresse, se sentiria em débito consigo mesmo e com o riquixá.

Depois de chegar à cidade, ele cresceu mais dois dedos. Ele mesmo percebeu isso e achava que cresceria ainda mais. De fato, seu corpo havia ficado mais robusto, e acima dos lábios despontava um princípio de bigode. E, sim, ele queria ficar ainda mais alto. A cada vez que tinha que se abaixar para passar por um portão de rua ou uma porta, apesar de nada dizer, ria por dentro, pois mesmo já sendo alto sentia que seguiria crescendo. Agradava-lhe sentir-se adulto e ainda criança.

Uma pessoa vigorosa como ele, em cima de um riquixá tão bonito e que era só dele –com os amortecedores tão macios que faziam os varais vibrarem, o chassi brilhante, impecável, o assento muito branco e uma sonora buzina–, queria correr como forma de homenagear a si próprio e ao riquixá. E olha que isso não era falsa modéstia, mas sim, para ele, um dever: tinha que correr, quase que voar, para desenvolver ao máximo sua força e exaltar a beleza do riquixá. Aquele veículo era adorável; meio ano depois, andando com o riquixá na rua, ainda nutria por ele um grande carinho. O veículo correspondia ao menor sinal do balanço da cintura, de uma flexão da perna ou de um endireitar da coluna de Xiangzi. Parecia que tentava ajudar seu dono de maneira incondicional, não existia nenhuma barreira entre o riquixá e Xiangzi. Em lugares planos e mais inóspitos, Xiangzi corria apenas com uma mão em um dos varais, e o ressoar manso da borracha dos pneus traseiros fazia-o avançar veloz e estável. Ao chegar ao destino, a roupa de Xiangzi ficava encharcada de suor, como se tivesse sido tirada do balde. Sentia-se exausto, mas feliz e orgulhoso. Um cansaço como se tivesse galopado um cavalo de raça.

Dizem que a valentia leva ao descuido, mas Xiangzi era prudente quando desembestava a correr. Se não fosse depressa ficaria mal com o passageiro, mas, se ao correr batesse o riquixá, se sentiria mal consigo mesmo. O veículo era sua vida, sabia que tinha de ser cuidadoso. Como era valente e cauteloso, a autoconfiança crescia nele a cada dia, e acreditava que ele e o veículo eram de ferro.

O Garoto Do Riquixá
Lao She
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Assim, não só corria destemido como não se importava com quanto trabalhava. Ele achava que puxar um riquixá para ganhar o pão era a melhor coisa da vida. A qualquer hora que quisesse sair em busca de uma corrida, ninguém poderia detê-lo. Não prestava atenção aos rumores que corriam pelas ruas –os soldados que entraram pelo oeste da cidade, as batalhas em Changxindian, o recrutamento forçado para além do Portão Oeste, o fechamento dos portões de Qihua por meio dia; nada disso importava. Quando as lojas fechavam, os ambulantes se recolhiam e as ruas eram tomadas pela polícia e pelas forças da segurança, e ele também saía de perto e interrompia o serviço. Contudo, não acreditava em rumores. Ele sabia se cuidar, em especial porque o riquixá era dele, mas Xiangzi não passava de um camponês e não tinha a malícia das pessoas da cidade. Além do mais, a robustez de seu corpo levava-o a acreditar que, caso o pior acontecesse, na hora ele saberia se virar, e não teria grandes prejuízos: ele era tão robusto e tinha os ombros tão largos!

Todos os anos na primavera, quando o trigo despontava nas searas, chegavam os rumores da guerra. Para a população do norte, as espigas de trigo e as baionetas eram símbolo da esperança e sinônimo para receios. O riquixá de Xiangzi completou seis meses na estação em que as espigas de trigo precisavam das chuvas de primavera. Chuva não cai quando o povo quer; e a guerra, independente do desejo dos homens, vinha de qualquer jeito. Se as notícias eram fatos ou rumores, Xiangzi não se importava: era como se nunca tivesse vivido no campo; esquecera"'se de como a guerra destruía a lavoura e não lhe interessava a previsão do tempo. Tudo o que importava era o seu riquixá, pois era com ele que obtinha o pão de cada dia, e esse era para ele a sua terra fértil, que o acompanhava de maneira resignada; enfim, o seu tesouro. Mas, devido à seca e às notícias de guerra, o preço dos alimentos aumentava, disso Xiangzi entendia. Porém, como as demais pessoas da cidade, ele só sabia lamentar a situação, mas nada podia fazer. Se os mantimentos estavam caros, assim era, e quem haveria de ordenar a diminuição dos preços? O comportamento geral levava-o a cuidar apenas de sua vida e a seguir em frente.

Se os habitantes da cidade não tinham controle sobre a situação, sabiam criar rumores –às vezes criavam do nada e, outras vezes, aumentavam bastante–, provando que disso entendiam e que não eram tolos nem preguiçosos. Eram como peixinhos que vão à tona da água e passam o tempo a fazer borbulhas, o que é engraçadinho, mas completamente inútil. Dentre os rumores, os mais interessantes eram os relacionados à guerra. Outros eram apenas boatos, como falar de assombrações –não é por falar nelas que as almas penadas aparecem. Quanto à guerra, já era bem diferente: como não havia notícias precisas, as consequências eram imediatas. Talvez houvesse diferenças nos detalhes, mas, quanto à iminência da eclosão da guerra, a probabilidade era de 80 a 90% real. "Haverá guerra" era uma frase de efeito, cedo ou tarde aconteceria. Quanto aos adversários envolvidos e os seus motivos, cada um tinha uma versão. Xiangzi não era alheio a isso. Mas, quanto àqueles que vendiam a força de trabalho, incluindo os puxadores de riquixá, apesar de não darem as boas-vindas à guerra, ao topar com ela não caíam em ruína. Os que mais entravam em pânico nas guerras eram os abastados. Mal ouviam rumores e tratavam de debandar. O dinheiro abria-lhes o caminho e acelerava-lhes a partida. Mas os ricos não conseguiam fugir sozinhos; dado o peso da fortuna, alugavam muitos pares de pernas para lhes ajudar. Tinham caixas para serem carregadas, velhos, mulheres e crianças para serem transportados, e é nesses momentos que aqueles que vendem a força de seus braços e pernas ganham dinheiro, subindo o preço da mão de obra.

LAO SHE (1899-1966), escritor chinês nascido em Pequim, foi perseguido na Revolução Cultural.

MÁRCIA SCHMALTZ, 44, é tradutora.

GRACE ZHANG, 23, ilustradora canadense, mora em Nova York. Esteve como artista residente no Brasil com bolsa do programa Lighton para intercâmbio de artistas.


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