Folha de S. Paulo


Quando um 'Romeu e Julieta' mineiro foi parar no teatro de Shakespeare

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Bandeira hasteada no Shakespeare's Globe na temporada de 2000
Bandeira hasteada no Shakespeare's Globe na temporada de 2000

Estávamos fazendo o primeiro ensaio técnico para testar o carro que seria utilizado na nova versão de "Romeu e Julieta", espetáculo dirigido por Gabriel Villela. O espaço utilizado era o da área externa do Globe Theatre, que funcionava como um depósito de cenários.

Era necessário testar as alturas e ajustar palcos e escadas que deveriam ser acoplados à estrutura do veículo. O carro a ser usado era um Volvo branco, que substituiria nossa Veraneio vinho, ano 74. O novo carro era bem mais baixo, o que exigiria ensaios, especialmente para adaptarmos alguns movimentos com as pernas de pau.

Além dos atores, de Gabriel e do produtor, nosso grupo contava com a presença de Paulo José e Kika Lopes, que estavam coletando imagens do Galpão para um documentário sobre o grupo, lançado cinco anos depois.

O "Romeu e Julieta" do Galpão, que havia estreado em setembro de 1992 no adro da igreja de São Francisco, em Ouro Preto, fizera, em 1996, uma primeira temporada no parque Battersea, em Londres, em tenda montada para celebrar um mês dedicado a Minas Gerais na capital inglesa. Naquela mesma ocasião, havíamos feito a abertura de um show de Milton Nascimento no Royal Albert Hall, com um trecho de "A Rua da Amargura".

O alcance das apresentações de "Romeu e Julieta" nos anos 1990 havia ficado restrito a um público composto pela entusiasmada comunidade brasileira de Londres. A exceção ficou por conta de alguns poucos ingleses, entre os quais se incluíam professores (especialistas na obra de Shakespeare) do núcleo de atividades pedagógicas do projeto Shakespeare's Globe Theatre, que estava sendo construído no bairro de Bankside, à beira do Tâmisa.

O projeto havia sido idealizado pelo ator e diretor americano Sam Wanamaker. O edifício seria erguido num terreno a pouco mais de 200 m do local do teatro original de Shakespeare, que pegou fogo em 1613 e acabou demolido em 1642.

Por ocasião de nossa primeira temporada em Londres, os diretores pedagógicos do Globe, encantados com a montagem de "Romeu e Julieta", convidaram-nos para visitar as obras do teatro.

Para nossa surpresa, pouco mais de três anos depois, em 1999, recebemos uma chamada de nosso amigo e parceiro, o mais carioca dos ingleses, Paul Heritage, consultando-nos sobre a possibilidade de uma temporada do espetáculo no palco do Shakespeare's Globe.

O teatro acabara de inaugurar um projeto em sua agenda de verão para grupos e trabalhos que "traziam visões inovadoras sobre a obra de Shakespeare". Depois de um "Sonho de uma Noite de Verão" numa versão cubana e de um "Rei Lear" indiano, seria a vez de um "Romeu e Julieta" brasileiro.

Em fevereiro de 2000, fiz uma primeira visita técnica ao teatro, em pleno inverno londrino. O local estava fechado ao público por causa das condições climáticas.

Mesmo assim, pude assistir a uma emocionante apresentação realizada por alunos de uma escola pública de Londres, em que crianças de seis a oito anos entravam sozinhas no palco do Globe e recitavam um texto ou poema de Shakespeare. Fiquei pensando em como os ingleses receberiam nosso "Romeu e Julieta" tão mineiro e irreverente.

A pulga ficou atrás da orelha.

A resposta veio nas duas semanas de julho daquele ano, com o teatro sempre lotado nas 14 sessões que fizemos. O público a princípio reagia com certa desconfiança, especialmente à entrada de uma trupe um tanto clownesca de músicos, mas pouco a pouco ia se entregando ao espetáculo.

Ao final, muitos ingleses vinham nos falar de uma singeleza e de uma capacidade de resgatar a veia popular da obra de Shakespeare que estaria um tanto esquecida por lá, pelo excesso de reverência que sua obra inspirava.

Doze anos depois, "Romeu e Julieta" voltaria ao palco do Globe, desta vez como parte da programação comemorativa das Olimpíadas de Londres, quando as 39 peças de Shakespeare foram encenadas no teatro, em línguas e países dos cinco continentes.

Voltando àquele dia do nosso ensaio técnico antes da estreia: num dado momento, a cena foi interrompida por um diretor do Globe para que fôssemos para a rua em frente ao teatro, à beira do Tâmisa.

Segundo uma velha tradição, sempre que havia função no palco, uma bandeira era hasteada para sinalizar às pessoas do outro lado do rio que haveria espetáculo.

Foi assim que o pavilhão do Brasil tremulou por duas semanas no mastro do Shakespeare's Globe.

EDUARDO MOREIRA, 56, é ator fundador do Grupo Galpão.


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