Folha de S. Paulo


Domesticado, humor inglês troca sátira política por relacionamentos

RESUMO O tradicional humor inglês parece sentir as consequências da crise no Reino Unido. Os comediantes, em tese detentores de passe livre para debochar do poder, têm dado as costas para os temas de política e se concentram em relacionamentos amorosos. O autor enumera séries de TV que fazem sucesso com o novo mote.

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O ator britânico Sacha Baron Cohen no filme 'Borat - O Segundo Melhor Repórter...'

Se há séculos um dos alardeados traços do caráter nacional inglês é nunca perder a piada, a crise atual no Reino Unido deve ser grave. Num país movido a altas doses de tensão pela iminente ruptura com a Europa via "brexit", até o humor local parece ter resolvido que era hora de discutir a relação.

Tomada de modo superficial, essa impressão poderia se explicar apenas pelo fato de que, na TV, já há algum tempo mídia preferencial da melhor ficção fora dos livros, a comédia britânica tem se sobressaído com séries invariavelmente centradas em relacionamentos, como "Catastrophe", do Channel 4 e disponível nos EUA pela Amazon, "Chewing Gum", da Netflix, e "Fleabag", da BBC3.

Mas há um sentido mais profundo na tirada sobre o momento DR da rica tradição cômica do Reino Unido —nobre linhagem que faz das pantomimas de Shakespeare ancestrais diretas das adoradas esquetes do Monty Python e deságua no humor politicamente incorreto de "Borat - O Segundo Melhor Repórter do Glorioso País Cazaquistão Viaja à América", talvez o personagem mais conhecido do comediante Sacha Baron Cohen.

Para entender o estado atual do humor inglês, porém, é preciso levar em conta o chamado "Zeitgeist" —espírito do tempo— que baixou particularmente opressivo sobre as ilhas além do Canal da Mancha.

Não muito tempo atrás, em artigos veiculados em publicações britânicas, um talentoso praticante contemporâneo da sátira em sua vertente literária, o romancista Jonathan Coe, via no clima político dominante uma oportunidade.

"O momento clama por absurdo, caricatura e avacalhação, pois são essas as únicas formas de capturar a realidade atual —[de encontrar] a tão necessária clareza moral nessa hora, uma imagem de cartum que sirva de atalho, imediato e sem rodeios, para a verdade", escreveu Coe. Seu entusiasmo, no entanto, não encontrou a ressonância que se esperaria.

O clássico episódio de "Monty Python" sobre jogo de futebol entre filósofos gregos e alemães

O episódio de "Monty Python" sobre futebol entre filósofos gregos e alemães

DOMESTICAÇÃO

Uma interpretação possível para tal apatia é a de que, mais ou menos como na política, em que tudo tendeu muito ao centro desde os governos de Tony Blair (primeiro-ministro britânico de 1997 a 2007), também o humor acabou bastante domesticado —e agora fica difícil ver alguma graça nas consequências, como o "brexit" e a manutenção no poder do governo conservador mais desastrado em décadas.

A velha sátira, a não ser por espasmos, mostra pouca capacidade de reação. Por quê?

"Lançar ataques contra autoridades e estruturas estabelecidas [de poder] é um negócio perigoso. Daí fazermos isso como se fosse 'só brincadeirinha'", diz Paul McDonald, professor da Universidade de Wolverhampton, autor de "The Philosophy of Humour" (Philosophy Insights; a filosofia do humor), pequeno manual de escrita criativa em que oferece uma introdução inteligente e didática ao tema.

"O problema é que, nessa 'zona de segurança', isso pode não ter efeito nenhum e até reforçar as estruturas que se pretendia atacar."

McDonald comenta ainda a interessante figura do político que faz graça de si mesmo. "Tendemos a confiar em pessoas com esse traço de personalidade. Gostamos de gente que não se leva muito a sério e desconfiamos de quem se leva."

O professor aponta um exemplo na atual cena política britânica: "É difícil achar outra razão para a popularidade de Boris Johnson [prefeito de Londres de 2008 a 2016 e uma das figuras mais proeminentes do Partido Conservador]".

"Hoje em dia", escreveu o romancista Jonathan Coe, "qualquer político rende um manancial de piadas. O riso que ocasionalmente costumava iluminar os recessos obscuros da política com brilhantes e inesperadas estocadas de hilaridade se tornou apenas um reflexo impensado, uma monótona reação pavloviana a situações sobre as quais achamos difícil ou depressivo demais parar para pensar."

Em suma, segundo Coe, "o riso se torna não somente ineficaz como forma de protesto como passa a ser, na verdade, um substituto do protesto".

Em outras palavras, se nada é digno de ser levado a sério, qualquer coisa acaba sendo, inclusive eleger Donald Trump como presidente da maior superpotência do planeta ou votar no "brexit".

Poucas vezes se viu tamanha inversão de valores em tão pouco tempo. (Uma boa imagem de cartum para o atual estado de coisas, seguindo a sugestão de Jonathan Coe, talvez fosse o mundo de ponta-cabeça, com Trump e companhia, cavaleiros da nova moral, montados em cima.)

BOBOS DA CORTE

Parte do ônus dessa polarização extrema caiu no colo do pessoal da comédia, satiristas em particular, historicamente os porta-vozes da insatisfação popular com os políticos, bobos da corte contemporâneos com licença para debochar dos poderosos de turno.

Há ainda quem atribua os constrangimentos por que passa o humor, sobretudo a sátira, àquele que talvez seja o sintoma cultural mais evidente de duas décadas de desmobilização política: o politicamente correto.

Daí algumas séries cômicas recentes produzidas pela TV inglesa estarem apostando alto numa possível saída para o impasse político-cultural contemporâneo ao fazer rir de novos tabus, especialmente os comportamentais.

Houve a fase do sucesso de alguns ótimos dramas em sua vertente de época, como "Downton Abbey" (Netflix), de ficção científica, como "Doctor Who" (já exibida pela TV Cultura e hoje no Syfy) e "Black Mirror" (Netflix), de investigação policial, como o fenômeno "Sherlock" (Netflix), e até uma recente e inusitada adaptação das histórias de Georges Simenon com Rowan Atkinson, o Mr. Bean, no papel do detetive Jules Maigret (produção do canal ITV).

Agora, o que de melhor a TV britânica tem produzido e exportado são comédias de profundidade psicológica, mais reflexivas, "dark comedies", como são chamadas.

"Catastrophe", com sua quarta temporada já em produção, consegue colocar em cena várias questões atuais ao contar a história do casal Rob (Rob Delaney) e Sharon (Sharon Horgan) —sintomaticamente, os personagens levam os primeiros nomes dos próprios atores que os interpretam, "gente de verdade" com quem se esbarra nas ruas de uma grande cidade como Londres.

No começo de tudo, ele é um americano em visita de negócios à cidade, e ela, a moradora local que acaba engravidando no breve "affaire" entre os dois, que passam a morar juntos na capital inglesa.

MAIS QUE DR

Essas novas produções, contudo, querem ir além dos relacionamentos per se: voltam a oferecer incorreção política a uma época até outro dia politicamente anódina.

São impactantes as cenas de abertura dos episódios de estreia tanto de "Chewing Gum" (escrita e protagonizada pela atriz cômica Michaela Coel) quanto de "Fleabag" (com Phoebe Waller-Bridge, mais um jovem talento feminino, à frente de elenco e roteiro).

No primeiro caso, a personagem central, moradora de um subúrbio de Londres, ajoelha-se para acompanhar a oração do namorado ultrarreligioso e contrário ao sexo antes do casamento e fica de olho na ereção visível do rapaz —minutos antes, o casal dava uns amassos no quarto da moça, onde acabam rezando.

"Fleabag", saga triste da garota de 30 e poucos anos um pouco perdida na vida, abre com uma cena na qual a protagonista, num solilóquio direto para a câmera, tenta ganhar a empatia do espectador para sua situação: na cama, num encontro casual que ela mesma procurou, as coisas não estão saindo bem como o esperado —pano rápido para o proverbial (e sempre desconfortável) diálogo da manhã seguinte, hilariante, mas melancólico.

Essas novas séries têm recebido boa acolhida de crítica e público nos Estados Unidos, sem que a velha tradição cáustica tenha cedido lugar ao tom mais conciliador e bem comportado, às vezes apatetado, de tantas sitcoms [comédia de situação, séries cômicas de roteiro simples] americanas (basta pensar em "Friends").

É possível que a vitalidade do humor inglês tenha migrado não apenas para outra seara, a dos comportamentos —na defesa de uma visão mais progressista hoje sob ataque nos meios políticos propriamente ditos—, como também cruzado o Atlântico para influenciar o modo como se faz comédia nos Estados Unidos.

Uma primeira indicação de que poderia haver aí uma tendência foi a boa acolhida, já há alguns anos, de Ricky Gervais e seu "The Office" pelo público americano (embora, admita-se, em versão um pouco domesticada se comparada à série original).

Mais recentemente, foi Sharon Horgan, de "Catastrophe", quem se lançou de vez à conquista da América com "Divorce", da HBO, estrelada por Sarah Jessica Parker —a eterna Carrie de "Sex and the City", badalada série, depois levada às telas de cinema, que explorava com sagacidade a educação sentimental de quatro amigas nova-iorquinas, típicas personagens urbanas da virada do milênio.

Só o título da nova série protagonizada por Parker já dá pistas suficientes de que "Divorce" passa longe desse tom ameno: solidão, sofrimento e, claro, batalhas judiciais agora são parte do pacote.

Sobretudo, parece haver a percepção de que o tipo de riso leve tão apropriado a uma América otimista pré-11 de Setembro foi se tornando cada vez mais inviável e, na Trumplândia, é quase blasfemo: de novo o "Zeitgeist".

Será um grande alento se, mesmo sob nuvens negras, os ingleses seguirem mostrando que ainda são capazes de não perder a piada.

CHRISTIAN SCHWARTZ, 42, pesquisador visitante na FGV e em Cambridge, é jornalista e tradutor.

Trailer da série "Catastrophe"

Trailer da série "Catastrophe"

Trailer da série "Chewing Gum"

Trailer da série "Chewing Gum"


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