Folha de S. Paulo


Como um brasileiro virou dono da última carta de Toulouse-Lautrec

Arquivo Pessoal
SÃO PAULO, SP, 26.JUN.2017 - Carta manuscrita de Henri de Toulouse-Lautrec e Paul Viaud à condessa Adéle, parte da mostra
Carta de Toulouse-Lautrec e Paul Viaud à condessa Adéle, parte de mostra em cartaz até 1º/10 no Masp

Como colecionador de manuscritos, tive a oportunidade de formar, ao longo de mais de 20 anos, um acervo de 50 cartas e fotografias relacionadas ao artista francês Henri de Toulouse-Lautrec (1864-1901), que será exibido na exposição "Toulouse-Lautrec em Vermelho", no Masp.

Sua arte e a história de sua vida sempre me interessaram, e pude adquirir, aos poucos, em leilões e em casas especializadas, centenas de peças representativas do pintor.

A ocasião mais importante ocorreu em 2002, quando, em Nova York, foi oferecida em leilão a lendária coleção Schimmel, do casal americano Ruth e Herbert D. Schimmel.

Colecionadores apaixonados por tudo o que se referisse a Lautrec, os Schimmel acumularam, em mais de 40 anos, coleção completa da produção gráfica do francês e o maior conjunto de suas cartas.

Com tantos itens, Herbert Schimmel tornou-se o editor da correspondência completa do artista, um volume que reúne o texto de suas 638 cartas localizadas até hoje, das quais os Schimmel possuíam os originais de mais da metade.

Pensou-se por muito tempo que essa fabulosa coleção tivesse sido discretamente vendida em bloco a uma universidade japonesa. Tal presunção permitia supor que esses manuscritos do artista não voltariam ao mercado, tornando os remanescentes ainda mais raros e disputados.

Para a surpresa geral, contudo, revelou-se em 2001 que a compra pelo Japão havia feito parte das aquisições especulativas realizadas por empresas japonesas nos anos 1980, quando obras de arte superavaliadas eram usadas como garantia para alavancar empréstimos e negócios de risco.

Em 1990, sobreveio a crise financeira naquele país, e o mercado de arte ruiu. Alguns anos mais tarde, a coleção Schimmel foi entregue a um grande colecionador e marchand de peças orientais, Robert H. Ellsworth, por uma empresa endividada que precisou vendê-la rapidamente pelo melhor preço possível.

Essa venda revelou-se uma oportunidade extraordinária para alguns colecionadores apaixonados, pois as cartas, de tão numerosas, tiveram de ser oferecidas em lotes de cinco, sete ou mesmo dez itens, o que pareceria impensável antes, quando qualquer peça manuscrita de Lautrec merecia ser um lote individual em um leilão.

Eram tempos em que leilões pela internet não funcionavam ainda com a eficiência de hoje. Além disso, absurdas falhas na divulgação fizeram com que muitos colecionadores e especialistas europeus deixassem de receber o catálogo a tempo —e perdessem o pregão.

Assim, a disputa foi relativamente menor, e os colecionadores que participaram tiveram a chance de comprar certos lotes por valores muito inferiores aos esperados.

Foi nessa ocasião que pude adquirir dois pontos altos da coleção Schimmel: a primeira carta conhecida de Toulouse-Lautrec, escrita por sua mãe, mas assinada pelo artista aos seis anos de idade, e também a última missiva de sua correspondência —um bilhete para sua mãe no verso de uma carta de seu amigo Paul Viaud, de 1901.

Por motivos óbvios, essa última carta é especialmente comovente; na verdade, trata-se de um mero adendo de três linhas à carta de Viaud. Em sua edição da correspondência, Schimmel considera que essa nota pode ter sido a última mensagem escrita por Toulouse-Lautrec: ele teria pela frente mais seis semanas de vida, apenas.

Viaud evita alarmar Adèle, dizendo que seu filho estava começando a se alimentar e que a água do mar lhe fizera recuperar o apetite. Avisa que devem ficar mais uma semana no balneário de Taussat, próximo a Bordeaux, e que, embora Henri não tivesse tido, antes, nenhuma especial vontade de ver o mar, naquele momento estava encantado.

PEDRO CORRÊA DO LAGO, 59, é historiador da arte, editor, colecionador, escritor e curador.

Nota: A exposição "Toulouse-Lautrec em Vermelho" está em cartaz no Masp, em São Paulo, até 1º/10, de terça a domingo, das 10h às 17h30, e às quintas, até 19h30.


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