Folha de S. Paulo


Best-seller lista 20 iniciativas para impedir eventual tirania de Trump

RESUMO Com o formato de um livro de autoajuda, "Sobre a Tirania", do historiador Timothy Snyder, tornou-se um best-seller instantâneo nos EUA. A obra, recém-lançada no Brasil, reúne 20 lições com o objetivo de evitar que o governo de Donald Trump se transforme num regime autoritário, como foram o nazismo e o comunismo.

Joe Raedle/Getty Images/AFP
Donald Trump anuncia recuos na política com Cuba, em Miami
Donald Trump anuncia recuos na política com Cuba, em Miami

O formato é o de livro de autoajuda. O objetivo, porém, não é passar dicas para emagrecer, ganhar confiança ou subir na carreira.

"Sobre a Tirania" [trad. Donaldson M. Garschagen, Companhia das Letras, 168 págs., R$ 24,90], de Timothy Snyder, 47, pretende "dar instrumentos aos leitores para que se defendam da construção de um regime autoritário", resume o autor em entrevista à Folha, por telefone.

Desde seu lançamento, o livro está nos primeiros lugares das listas dos mais vendidos nos EUA e foi distribuído a 35 países.

Professor de história na Universidade Yale e autor de "Terras de Sangue: A Europa entre Hitler e Stálin" (Record), entre outros livros, Snyder diz que se sentiu compelido a buscar, no período histórico de sua expertise, dicas e referências para evitar que a presidência de Donald Trump nos EUA se transforme num regime autoritário.

Dividindo sua obra em 20 lições, Snyder tenta mostrar ao cidadão comum o que é a tirania e procura ensinar a identificá-la no nascedouro. Entre suas dicas estão "não obedeça de antemão", "defenda as instituições", "cuidado com grupos paramilitares" e "aprenda com pessoas de outros países".

*

Folha - Por que o sr. escolheu o formato de um livro de lições, no estilo das obras de autoajuda?

Timothy Snyder - O volume cobre cerca de cem anos de história. O formato das lições foi o que me pareceu mais prático para a intenção da obra, que era apresentar um resumo dos aspectos mais críticos do período que estudei e que podem ajudar a entender o que vivemos.

Creio que, se escolhesse o padrão acadêmico e tradicional, com a intenção que tinha, o livro não repercutiria. O que diferencia "Sobre a Tirania" de outros títulos no mercado que tencionam explicar o fenômeno Trump é que oferece lições num formato claro e direto, que pode ser facilmente assimilado.

Deu resultado. O livro está nas listas de mais vendidos desde que foi lançado nos EUA. Era a intenção?

Estar entre os mais vendidos não era algo que eu buscava. Mas aprendi que, de fato, é um formato que as pessoas adoram (risos). Essa ideia de aprender uma lição por dia, ou de consumir pílulas de conhecimento que podem ser postadas nas redes sociais, como exemplo de iluminação, funciona para o grande público. Como a intenção era chegar a esse grande público, o recurso se mostrou eficiente.

Obviamente, não se trata só do formato. O que fez com que acreditasse ser necessário oferecer essas lições ao público dos EUA neste momento?

Venho tentando entender o que ocorreu desde a eleição e procurando explicações onde conheço, na história. Como digo na introdução, a história não se repete, mas ajuda a nos instruir. Como eu, acho que boa parte dos americanos está surpresa desde a vitória de Trump. O livro tocou num nervo sensível, pois oferece dicas práticas para serem usadas no dia a dia e que podem ajudar a evitar que essa presidência vire uma tirania.

O sr. fala da certeza que muitos tinham de que nada alteraria o curso da história depois da queda do Muro de Berlim. O sr. acha que a democracia ocidental corre o mesmo risco da União Soviética, cujo sistema colapsou em questão de dias?

Preciso reforçar que creio que interpretamos muito mal o fim da União Soviética, e isso se transformou num perigo real para nós.

A União Soviética tinha uma história, que era a do marxismo e do comunismo levados a uma certa prática. Quando seu sistema ruiu, as pessoas no Ocidente se convenceram, por alguma razão, de que essa derrocada ocorrera porque aquela história não era verdadeira.

Por consequência, cometeu-se outro erro, ainda pior: achar que a nossa história, por oposição, era não só verdadeira como correta.

Nós estabelecemos esse determinismo, essa verdade que parecia inquebrantável, de que a única história possível era a nossa e de que o único sistema possível era o do Ocidente. Esse determinismo se mostra muito perigoso agora.

Qual era a lição correta que deveríamos ter aprendido?

A de que forças históricas dependem de escolhas individuais e que, por isso, estão abertas e podem, sim, tomar rumos distintos. Mas preferimos dormir com o conto de fadas que havíamos construído. Creio que o fato de estarmos adormecidos, sonhando, explica o espanto diante do que vivemos agora.

Dito isso, eu não acho que a democracia vá terminar num só dia, mas creio que nossa má interpretação sobre o fim da União Soviética volta a ser um tópico que deveríamos analisar. Afinal, sistemas que pareciam sólidos colapsam. O predomínio da democracia não é inevitável e pode sofrer abalos.

Principalmente, temos de nos dar conta de que a história depende de nossas ações cotidianas, e não de presunções de que "agora estamos no caminho certo".

Em uma de suas lições, o sr. pede que não deixemos que nossa linguagem se reduza à dos noticiários e da internet e que voltemos a ler livros em papel. Por quê?

Essa é uma das lições de que as pessoas mais falam, creio que por sentirem que o bombardeio de informação que vivemos é confuso e pode ser perigoso. Ela chama a atenção para a redução vocabular que ocorre porque muitos transformam a internet e a TV nos únicos meios de receber informação.

É uma orientação que tem a ver com uso da língua e que parece trivial, mas na verdade toca em algo muito mais profundo e sugere algo drástico: que as pessoas mudem o modo como gastam o tempo.

Assim como não é a mesma coisa ficar passivo diante dos acontecimentos ou engajar-se numa atividade beneficente ou política, também não é o mesmo direcionar a cabeça para uma tela e ficar ali parado horas e horas, sendo interrompido e levado a outras janelas, ou direcioná-la para um livro e se concentrar nele.

Diante de um livro, você amplia seu vocabulário. Se nós permitirmos que nosso vocabulário encolha, será muito difícil descrever o que está acontecendo conosco. Além disso, estaremos usando as mesmas expressões das pessoas a quem nos opomos.

Mais, para imaginar um mundo diferente, precisamos de um vocabulário para ele. O que usamos todos os dias é decerto inadequado. A proposta dos projetos políticos autoritários é fazer com que o futuro não possa ser imaginado. É nos impedir de pensar como as coisas poderiam ser diferentes. Por isso os livros são importantes.

Mas o sr. se refere a qualquer livro?

Em última análise, sim, qualquer livro trará algo distinto do que está nas telas que todo mundo lê. Eu indico vários livros que me inspiraram a pensar nesse volume. O irônico é que os que mais me ajudaram a refletir são obras do meio do século 20, como "1984", de George Orwell (1949), ou "Fahrenheit 451", de Ray Bradbury (1953).

Um dos capítulos fala do engajamento ético de profissionais e lembra que médicos e advogados, se tivessem agido segundo a ética de suas profissões, teriam impedido o funcionamento da máquina nazista. Como o exemplo se aplica hoje?

Mudanças para regimes autoritários sempre dependeram do consenso da população civil. Não necessariamente do voto, mas de certos modos de cooperação.

Indivíduos que escolhem não fazer nada também ajudam a instaurar um regime autoritário. Há profissionais que escolhem adaptar-se por [instinto de] sobrevivência e são igualmente cúmplices.

O exemplo mais terrível é mesmo o que você menciona. Médicos e advogados, cujos ofícios têm como razão de ser salvar vidas e garantir a aplicação justa da lei, fizeram parte do aparato do Holocausto.

Minha intenção foi mostrar que aquilo que indivíduos fazem no cotidiano pode parecer pequeno diante da história, mas não o é. Escolher agir segundo a ética da profissão pode impedir que um regime autoritário se imponha. Queria dizer às pessoas que elas têm mais poder do que pensam.

O sr. não acha que isso vem acontecendo nos EUA? A Justiça americana tem levantado obstáculos a Trump, e mesmo indivíduos em particular, como os advogados que foram a aeroportos ajudar imigrantes que estavam sendo barrados.

Sim, nesses dois exemplos vemos demonstrações de como a história ajudou os americanos. Boa parte dos advogados dos EUA sabe que advogados alemães, durante o nazismo, desenvolveram teorias raciais da lei e, com estas em mãos, atuaram de forma direta nos assassinatos em massa.

Também digo o mesmo sobre parte significativa da alta cúpula das Forças Armadas dos EUA. Ali há pessoas que têm plena consciência do que foram os anos 1930.

Não quero fazer com que o cenário pareça muito bonito, mas é preciso ressaltar o valor desses profissionais e enfatizar que aprenderam com outros autoritarismos.

O sr. chama a atenção para o tema dos paramilitares. Receia que o uso desse recurso cresça nos EUA?

Sim. Temos nos EUA milhões de pessoas que têm armas, várias associadas a alguma milícia. Historicamente, são antigoverno. O cenário que me preocupa é que algumas delas ou algum grupo de cidadãos com armas decidam que este é o seu governo. Por ora, estamos vendo isso acontecer de modo pontual, em crimes com motivações racistas.

Estou preocupado porque armas e violência são tradicionalmente um problema americano.

Sobre A Tirania
Timothy Snyder
l
Comprar

O sr. pode traçar paralelos entre o que vivem os EUA hoje e o que tem ocorrido na América Latina, no Brasil especificamente?

Não espere que eu faça comentários sobre política brasileira. Meu ensaio é uma tentativa de iluminar os tempos que estamos vivendo nos EUA desde que Trump foi eleito, à luz do que estudei sobre o nazismo e o Holocausto. Sair da minha área de expertise seria irresponsável.

SYLVIA COLOMBO, 45, é repórter especial da Folha.


Endereço da página:

Links no texto: