Folha de S. Paulo


Alguns filmes pedem a sala de cinema

RESUMO Com tempos mortos, planos longos, quadros abertos e roteiro vago, "Beduíno", de Júlio Bressane, e "Na Vertical", de Alain Guiraudie, vão na contramão da aceleração da montagem e da eficiência narrativa de produções comerciais. Sua proposta estética incomum parece feita para ser vista somente nas salas de cinema. Veja mais filmes que seguem na mesma linha.

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Alessandra Negrini em cena de 'Beduíno
Alessandra Negrini em cena de 'Beduíno'

Mesmo quem não adere às profecias e lamentos sobre a morte daquela que o crítico e teórico Ricciotto Canudo (1877-1923) um dia afirmou ser a sétima arte reconhece: a sala de cinema, hoje, não passa de uma dentre muitas possibilidades para quem quer ver filmes.

Ela concorre com televisão, computador, tablet, celular e telas móveis instaladas nos mais variados lugares, de ônibus, aviões e automóveis a salas de espera e outros espaços, individuais ou coletivos, como elenca o teórico Jacques Aumont no provocativo ensaio "Que Reste-t-il du Cinéma?" (o que resta do cinema?; Vrin).

Na França, na Itália, nos EUA, no Canadá, no Brasil e em outras partes do mundo, estudiosos e críticos vêm ecoando a questão.

Quais seriam os espaços para o exercício da cinefilia hoje? O que se perde com o abandono da experiência compartilhada na sala escura, em que a película translúcida desfila diante do facho de luz do projetor, lançando a imagem na tela branca a uma cadência de 24 quadros por segundo?

Como as tecnologias digitais de gravação e exibição transformam as texturas da imagem e determinam rupturas estéticas? Ainda se pode falar em cinema quando um filme (ou trechos dele) é mostrado em museus ou galerias de arte?

Nos últimos anos, cineastas premiados por importantes festivais vêm acrescentando camadas a esse debate ao fazer escolhas estéticas que tornam quase imperativa a exibição na sala escura.

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Os atores Damien Bonnard, India Hair e Raphaël Thiéry em '
Os atores Damien Bonnard, India Hair e Raphaël Thiéry em '"Na Vertical"

Opções pela longa duração e por uma sensação difusa de morosidade, assim como a predileção por enquadramentos abertos e filmagens em situações de pouca luz, vão no contrafluxo do cinema mais comercial, em que o ritmo da montagem é cada vez mais acelerado e a mise-en-scène privilegia planos médios e aproximados, facilitando a visão em telas menores.

DEVAGAR E SEMPRE

Algumas figuras de proa dessa contratendência são o malaio Tsai Ming Liang , o tailandês Apichatpong Weerasethakul , os chineses Wang Bing e Xu Xin e o turco Nuri Bilge Ceylan –ainda que construam filmografias absolutamente singulares e não possam ser enquadrados como representantes de um movimento estético homogêneo.

No que diz respeito à longa duração dos filmes e dos planos que os compõem, é improvável que haja radicalidade maior hoje que a do filipino Lav Diaz , autor de filmes de até dez horas. Depois de receber prêmios em Berlim e Veneza, o cineasta passou a ser distribuído mundo afora, e seu "A Mulher que se Foi" (2016), de quatro horas, entrou em cartaz por aqui.

Alguns planos de Diaz chegam a 15 ou 20 minutos, algo que seria impossível em película –em 35mm, a duração máxima de um rolo é de 11 minutos. Além de possibilitar fisicamente tomadas muito mais longas, a tecnologia digital, sensivelmente menos custosa, viabiliza gravações prolongadas e filmes imensos de orçamento enxuto.

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Cena do filme
Cena do filme "Cães Errantes", de Tsai Ming-Liang

No ramo do audiovisual que está mais preocupado com eficiência e produtividade, as possibilidades oferecidas pelo digital se traduzem em multiplicação de câmeras e em aceleração da montagem, como se vê, por exemplo, na figura do "time-lapse" –pense na frenética abertura da primeira temporada da série "House of Cards".

Sem ultrapassar as convenções de uma sessão normal, com cerca de 1h30 cada uma, dois filmes recentes oferecem ao espectador experiências pouco comuns, tanto na duração de seus planos quanto nas escolhas de encenação, e fazem todo o sentido na sala escura.

SEM EXPLICAÇÃO

Um é "Beduíno" (2016), do carioca Júlio Bressane, expoente do cinema marginal sempre distante de pressões pelo avanço da narrativa e pela funcionalidade do roteiro. Nele, o valor de cada plano é explorado ao máximo, as tensões e as belezas internas são tamanhas que quase prescindem de montagem.

O longa, que leva à cena um casal peculiar, encadeia divagações. Em diferentes momentos, mulher e homem são vistos a caminhar pelo parque Penhasco Dois Irmãos, no Rio de Janeiro. A estrada que corta a vegetação funciona menos como locação para ações dos personagens do que como linha sinuosa que enseja planos construídos geometricamente, indicando a tensão entre desejos que apontam para direções variadas.

No início, enquanto ela avança morro acima, da esquerda para a direita, ele faz o trajeto inverso; no final, os dois caminham juntos. Se se tratasse de uma história de amor, haveria elementos para sugerir uma reconciliação. O desejo de mise-en-scène, porém, parece superar toda e qualquer expectativa narrativa.

Cores, atmosferas e linhas de força prevalecem sobre tentativas de explicação e intriga. Será esse o sentido do pêndulo de Foucault, que a certa altura vemos oscilar no Museu de Artes e Ofícios, em Paris?

Em sequências que flutuam entre o sonho, a memória e a reencenação, ganham nova vida, por obra da tecnologia digital, imagens filmadas em película por Bressane em seu exílio londrino e provenientes de filmes como "Memórias de um Estrangulador de Loiras" (1971) e "A Fada do Oriente" (idem).

A calça vermelha de veludo cristal que o ator Fernando Eiras veste na sequência final de "Beduíno" remete ao figurino com que Guará Rodrigues era visto atacando jovens em "Memórias", que ressurge numa sequência não sonorizada (e de potência espantosa) do novo longa.

ODE AO POVO

Outro filme afeito a desvios e devaneios, particularmente propenso à fruição em sala, é "Na Vertical" (2016), sétimo longa-metragem do francês Alain Guiraudie, incensado e polêmico autor de thrillers sexuais.

Quando o filme estreou, em maio de 2016, no Festival de Cannes, o movimento Nuit Debout (noite em claro) contava quase dois meses. Desde o final de março, na Place de la République de Paris e em outros locais públicos da França, milhares de pessoas passavam as noites em pé, em debates, assembleias e manifestações artísticas que contestavam as mudanças na legislação trabalhista então na pauta do governo.

Nada mais natural, portanto, que o título –em francês, "Rester Vertical", literalmente "permanecer na vertical"– tenha sido interpretado alegoricamente como uma ode ao povo que não se dobra à cartilha europeia de austeridade.

A expressão também dá margem a uma interpretação mais lúbrica, e o erotismo está presente em cada plano de "Na Vertical", envolvendo inclusive a paisagem. Afinal, corpos e membros se erguem em sinal de coragem e de desejo e, eretos, afirmam sua existência e sua resistência.

O filme é conduzido por Léo (Damien Bonnard), um cineasta em crise criativa que vaga pelo interior da França sem conseguir avançar na escrita de um roteiro. Suas errâncias levam o espectador a uma série de personagens opacos, de Yoan (Basile Meilleurat), garoto avistado na beira da estrada, a quem o protagonista retornará de maneira obstinada, a Marie (India Hair), uma pastora de ovelhas que vive com o pai e os dois filhos numa zona deserta.

Não fica claro se o que ele procura nesses encontros é matéria para seu roteiro, sexo ou contato, de todo modo instâncias indiscerníveis aos olhos do público. Haveria uma busca maior no percurso desse homem perdido? Talvez a curiosidade assustadora de deparar-se com um lobo.

Quando conhece Marie, Léo diz a ela, sem grande convicção, que está interessado nos animais, que se proliferam na região, ameaçando rebanhos e irritando pastores. "Interessado como?", pergunta-lhe a pastora. "Sou como todo mundo. Os lobos me fascinam e me dão medo. Gostaria de vê-los."

1.001 HISTÓRIAS

As imagens filmadas de dentro do Peugeot envelhecido que Léo dirige, em meio à paisagem desértica da Lozère, no sul francês, sugerem uma proximidade com o cinema de Abbas Kiarostami (1940-2016).

Como o iraniano, Guiraudie constrói um roteiro afeito a ramificações, em que cada encontro apresenta ao espectador um universo, em estrutura que lembra as narrativas embutidas do Oriente Médio.

Em "Na Vertical", cada interação funciona também como uma preparação para o grande momento, no centro da alcateia, combinação de curiosidade e assombro, desejo e medo. Guiraudie diz que se deixou surpreender pelo roteiro, avançando ele próprio sem conhecer o ponto de chegada e sem esmiuçar a personalidade do protagonista, pouco transparente até o final.

Ponto pacífico entre os críticos é o caráter flou do script, algo confuso e incoerente. Nada mais propício para que o espectador, durante a sessão, reflita sobre sua própria condição, sobre os tempos mortos e as ineficiências do roteiro, sobre a narrativa que não avança.

Cenas contemplativas alternam-se com momentos de suspense, tensão e choque, em planos construídos como "tableaux" pictóricos –a referência mais explícita é à "Origem do Mundo" (1866), de Gustave Courbet.

Alguns deles, mais prolongados, desprovidos de drama, podem ser encarados como convites à distração. É aí que a sensação de duração sobrevém, apesar de o filme não ser propriamente longo.

DURAÇÃO SUBJETIVA

A partir de qual duração deve-se dizer que um plano, uma sequência ou um filme é longo? É difícil determinar para além da sensação subjetiva do espectador que se entedia ou adormece, incitado por uma cena de luz rarefeita e sem diálogo –ou sem qualquer som.

O que resta ao cinema quando as imagens em movimento ocupam múltiplas plataformas? Por um lado, a tela grande. É nela que fazem sentido os planos abertos sobre a imensidão da desértica paisagem da Lozère, em que rebanhos de carneiros formam desenhos nas pastagens, ressaltando a pequenez dos pastores.

Por outro, a obscuridade, que oferece as condições ideais para assistir a sequências de iluminação fraca ou misteriosa, insuportáveis em monitores sujeitos a reflexos.

Pode-se argumentar, com razão, que isso se resolve com um bom home theater. O que as plataformas domésticas não oferecem, então?

Só a sala de cinema, em sessões coletivas, é capaz de controlar o tempo do espectador, que não tem como pausar, acelerar ou repetir o fluxo do filme. Imobilizado na poltrona, imerso na penumbra, ele pouco pode fazer enquanto vê o filme –não responde a e-mails, constrange-se em checar o celular.

E nada melhor do que a sensação difusa de lentidão e ineficiência narrativa para perceber como se opera, ali, a gestão do tempo.

LÚCIA MONTEIRO, 39, é doutora em cinema pela Sorbonne Nouvelle - Paris 3 e pela USP, onde desenvolve pesquisa sobre cinemas nacionais periféricos.


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