Folha de S. Paulo


Enquanto TSE julga chapa Dilma-Temer, há razões para certo otimismo

Joel Silva/Folhapress
Julgamento no TSE da chapa Dilma-Temer é transmitido por TV em bar de Pinheiros
Julgamento no TSE da chapa Dilma-Temer é transmitido por TV em bar de Pinheiros

A "Ilustríssima" publica desde segunda-feira (5) artigos relacionados ao julgamento das contas de campanha da chapa Dilma Rousseff-Michel Temer pelo TSE, que começou na terça (6).

Em paralelo, a TV Folha transmite uma série de debates em torno do tema.

Leia abaixo texto de Marcus André Melo, professor de ciência política da Universidade Federal de Pernambuco, que participou de debate terça.

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Se viável fosse, estaríamos prestes a recorrer mais uma vez ao afastamento constitucional de um presidente, "arma pesada e difícil de manusear" do "museu de antiguidades constitucionais", como a ela referiu-se Silvio Romero (1851-1914) em seu clássico "Parlamentarismo e Presidencialismo na República Brasileira: Cartas ao Conselheiro Ruy Barbosa" (1893).

Nas suas duas modalidades (crime comum ou crime de responsabilidade), o afastamento exigiria maioria de dois terços dos deputados para aprovação, além da barreira da chancela do presidente da Câmara. Portanto, dificilmente terá lugar.

A cassação da chapa pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral), por seu turno, oferece possibilidades não triviais e produzirá cenário peculiar e pouco discutido nos debates sobre crises do presidencialismo.

A crise clássica –amplamente analisada por Juan Linz em vasta obra– ocorre quando presidente e Congresso entram em conflito e, tipicamente, o primeiro, cesarista e plebiscitário, atropela o segundo com iniciativas unilaterais.

Como ambos –presidente e parlamentares– são eleitos diretamente, configura-se um problema de legitimidade dual. Na América Latina, o desenlace dessas crises envolveu historicamente a intervenção dos militares.

O imbroglio atual é distinto por duas razões. Em primeiro lugar, sinaliza um problema de "ilegitimidade dual": ambos, presidente e parlamentares, perderam legitimidade. Há semelhanças com os casos argentino, de De la Rua (2001), e venezuelano, de Carlos Andres Perez (1993), que produziram um quadro de "Que se vayan todos!". (Perez sofreu dois golpes, e o paralelo com a Venezuela pára aqui).

Em segundo lugar, não há conflito nas relações Executivo-Legislativo –em franco contraste com a situação anterior de Dilma Rousseff (PT), quando tampouco ocorrera uma crise linziana típica. Nem no nascedouro da crise, nem no seu desenlace.

Ao perder o apoio da base, instaurou-se a coabitação entre uma imitação de primeiro-ministro apoiado pelo Parlamento (Eduardo Cunha) e chefe do Executivo à deriva (Dilma). Trata-se mais propriamente de semipresidencialização de nosso sistema do que de crise presidencialista. E mais: a chefe do Executivo resignou-se à arbitragem da corte suprema e às escolhas do Congresso.

Ainda assim, podem ser divisados elementos de crise presidencialista que resultam da inflexibilidade típica do regime. Enquanto o processo se desenrola, o país sangra. Esse foi o cenário sob Dilma e, ao que tudo indica, será o de Michel Temer (PMDB), em qualquer dos cursos de ação: cassação da chapa (seguida de embargos de declaração e recurso extraordinário) ou absolvição.

No novo cenário democrático, a arbitragem tem sido exercida pelo Judiciário. A disputa envolve intenso ativismo processual. O diabo está assim na gaveta do juiz. Isso pode gerar um senso de arbítrio, mas é melhor do que se estivesse nas forças das baionetas. É assim nas democracias. Os perdedores recorrem aos tribunais e acatam o resultado do jogo, num "equilíbrio autoimposto (self-enforced)": é menos custoso acatar o resultado desfavorável.

No que se refere à conjuntura atual, a Lava Jato (e intervenções assemelhadas) engendrou uma dinâmica específica marcada por tensões entre três grandes processos, configurando uma "tríade impossível" –um trilema– cujos elementos constitutivos são a continuidade do governo Temer, as reformas e a própria Lava Jato (expressão que uso aqui para designar o conjunto das ações de controle).

À semelhança do trilema Mundell-Fleming, da teoria macroeconômica, pares da tríade são viáveis, mas não todos os elementos simultaneamente (no modelo original, eram controle sobre o câmbio, livre curso de capital e politica monetária autônoma).

A rapidez com que as tensões entre os elementos da tríade explodem depende de parâmetros como o ritmo das investigações e as decisões judiciais.

O desenrolar da Lava Jato fere de morte Temer e sua "entourage" cada vez mais sitiada pela proliferação de evidências de ilícitos ("cada pena puxa uma galinha").

As reformas e a continuidade do governo Temer –com o enfraquecimento brutal da Lava Jato– tampouco representa quadro viável, dado o forte apoio das intervenções de controle.

O cenário da Lava Jato e das reformas sem presença de Temer beneficia-se do fato de não haver conflito Executivo-Legislativo, o que permite que a agenda do governo continue mesmo com a substituição do presidente.

Esse é o par mais provável para o desenlace. A presença de Temer passa a constituir-se em passivo tóxico ameaçando as próprias reformas.

INÉRCIA

A favor de sua continuidade está a inércia engendrada pela inexistência de sucessores viáveis. Temer permanecerá enquanto os custos de sua permanência forem menores que os benefícios esperados para a coalizão que lhe dá apoio. Mas os primeiros crescem exponencialmente, enquanto os últimos declinam linearmente.

Sabedor de que sua tábua de salvação é apresentar-se como timoneiro das reformas, o presidente e muitos setores da opinião pública insistem na iminência do colapso econômico e na inviabilização da retomada. É aqui que o paralelo com De la Rúa e Pérez também se esgota: não há emergência econômica em curso como hiperinflação, crise monetária, cambial ou de balanço de pagamentos. A emergência fiscal ainda é fundamentalmente subnacional. Isso confere baixa credibilidade à narrativa do capitão das reformas. O respeito a lei não pode ser atropelada por razões de estado, com apelo a falsos consequencialismos.

Ou seja, a constatação de que Temer se tornou tóxico produzirá um efeito manada de desembarque do governo. Mas, fora do governo, a maioria congressual pode apoiar a agenda de reformas. Situação inédita em crises presidenciais: ela permite que se arremesse ao mar a carga tóxica, o timoneiro incômodo. Este cenário trará consequências para a prevalência da regra da lei em uma sociedade aberta.

O Brasil debate intensamente os rumos de nossa democracia: a república possível e a desejável. O espectro da polarização e suas consequências e o da impossibilidade das soluções políticas também nos espreita.

Halperin Donghi (1926-2014), o maior historiador argentino, e Guillermo O'Donnel (1936-2011), seu maior cientista politico, descreveram seu país com uma "republica impossible".

O'Donnel descreveu o "impossible game" que caracterizaria grande parte de todo o pós-guerra argentino: os peronistas são impedidos de participar das eleições; se o fazem, ganham, mas, uma vez no poder, recusam-se a sair; fora do governo, não deixam governar. Um jogo sem equilíbrio nem ganhadores.

Muitos enxergam desavisadamente no nosso presidencialismo e nas suas instituições as raízes das crises. Outros ecoam o vaticínio de Silvio Romero (1893), que afirmou que os defeitos do nosso presidencialismo são tantos "que só são remediáveis por um povo cheio de virtudes cívicas, o que não é absolutamente o nosso caso". Entre a terapia institucional e a crença –em muitos casos inteiramente oportunista– na força redentora do apelo à cidadania, há razões para otimismo mitigado. Mas por razões de outra natureza.

JOGO IMPOSSÍVEL

As possibilidades da República no Brasil autorizam a conjetura que não ficaremos presos na armadilha de algum "jogo impossível" à brasileira.

A nossa experiência recente foi relativamente exitosa por mais de uma década. O quadro não é de crise constitucional. Não é crise típica do presidencialismo. Tampouco cinge-se a escândalos de corrupção. A crise resulta de um novo padrão global de aplicação das leis que resulta de crenças compartilhadas pelos atores que lhes dá sustentação. Por isso a crise é resultado de mudanças positivas - quem sabe assemelha-se a dores de parto de uma nova ordem social.

Pela amplitude de seus desdobramentos e pela simultaneidade com outras mudanças, esse novo padrão parece se inscrever num movimento mais amplo: um big bang, uma mudança institucional de larga envergadura capaz de alterar o equilíbrio inferior da corrupção sistêmica.

A mudança institucional descontínua ocorre pela transformação de crenças (mapas mentais) dos atores. Alguns países logram escapar da armadilha da corrupção sistêmica e transitam para um "equilíbrio superior", caracterizado pelo respeito à lei em um processo de "mudança institucional descontínua", de uma situação para outra. Se todos acham que a corrupção é a regra do jogo, estamos em uma armadilha. Caso acreditem que transações não corruptas prevalecem, obedecer à lei é estratégia dominante. Esse pode vir a ser o novo equilíbrio pós-crise. Há possibilidades para a República.


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