Folha de S. Paulo


TSE deve escolher entre Estado de Direito e espetáculo acusatório

Pedro Ladeira/Folhapress
Preparativos para o julgamento da chapa Dilma/Temer no TSE
Preparativos para o julgamento da chapa Dilma/Temer no TSE

A "Ilustríssima" publica desde segunda-feira (5) artigos relacionados ao julgamento das contas de campanha da chapa Dilma Rousseff-Michel Temer pelo TSE, que começou na terça (6).

Em paralelo, a TV Folha transmite uma série de debates em torno do tema.

Leia abaixo texto de André Ramos Tavares, professor titular da Faculdade de Direito da USP e professor da PUC-SP. Ele participa de debate nesta quarta (7), às 14h, com Marcelo Coelho, colunista da Folha, e Leandro Colon, diretor da sucursal de Brasília.

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Analisar as possibilidades dejulgamento da chapa Dilma-Temer no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) é impossível sem considerar as forças institucionais, os vetores ideológicos e os interesses econômicos que atuam nesse cenário.

É rotina do TSE julgar abusos de poder econômico ou político durante o período eleitoral, quando cidadãos-candidatos buscam convencer o maior número de cidadãos-eleitores. Se os atores envolvidos se excedem, a Constituição garante meios de impugnar a chapa e, desde que comprovada a conduta ilícita, o resultado previsto é a cassação.

Tecnicamente, e de maneira resumida, é isso. Fugir desse figurino permite a interferência judicial indevida na vida democrática.

Recentemente, o presidente do TSE, ministro Gilmar Mendes, proclamou que o tribunal não é instrumento para solução de crise política, indicando que cabe ao sistema político resolver seus problemas.

Invoco, neste ponto, a retirada de uma presidente eleita, que ocorreu pelo sistema político, com contribuição de juízes e tribunais, mas que apenas serviu para agravar a crise e agregar outras tantas que agora retornam ao Judiciário.

Some-se que a crise é considerada pelo cientista político Luiz Werneck Vianna um resultado obtido de forma consciente por "corporações jurídicas". Ele descreve a recente atitude de alguns procuradores e juízes como sendo a de "tenentes de toga", unidos por nada além da intenção de realizar uma reforma moral, sem maiores preocupações com os destinos do país.

Estamos em um momento histórico de máxima exposição das entranhas do poder político, com um Judiciário constrangido pelo cerco midiático que se formou em seu entorno.

Mas não é só. Temos hoje a força de um novo aparato acusatório que causa, em verdade, o silêncio e a domesticação de todo um povo.
Desse conjunto crítico resulta a primeira grande baixa: o Estado de Direito. E caminhamos para abater também o Estado social. Vivemos sob esse maquinário infernal, produtor (consciente) de insegurança em muitos níveis diferentes, como forma de controle e contenção política, mas que, em realidade, visa a conter a sociedade e as ruas.

Como esse aparato se retroalimenta em seus mecanismos internos de relacionamento institucional, sua paralisação voluntária parece improvável –e só ocorreria com grande prejuízo à legitimidade dos Poderes e das instituições já envolvidos.

No caso do TSE, uma mídia deslumbrada com a agonia política vislumbra um cenário no qual instrumentos típicos se transformariam rapidamente e sem aviso prévio em ofertas jurídicas de uma luta livre. Ampla defesa, limites processuais e impedimentos legais tornam-se relíquias de um passado perdido.

BOA SOLUÇÃO

O pedido de vistas seria uma boa solução, com toda a instabilidade que carrega (pois equivale a uma decisão de não decidir agora). Mais uma vez, o precário interessa, pois propicia instabilidade, na qual alguns conseguem operar com maior desenvoltura ou com benefícios diretos.

Assim, afrouxar e tornar bem elásticos os limites e os contornos da cassação de mandatos (também do impeachment, da delação premiada e da prisão provisória, para citar institutos que parecem ter caído no gosto popular e midiático) não soa como avanço, mas sim como retrocesso. Maximiza-se o que deveria ser, em um processo civilizatório, cada vez menor.

Outros institutos, direitos e regimes são diretamente impactados, como a presunção de inocência, a privacidade, a liberdade das escolhas e até mesmo as fronteiras entre condutas lícitas e ilícitas. Incerteza é a nova palavra na ordem jurídica, por mais paradoxal que seja.

Esse parece ser o principal fator no julgamento que se avizinha, no TSE. Há incerteza generalizada. Incerteza sobre o valor das provas, sobre o processo, sobre as possibilidades desse processo, sobre os julgadores (devido à curiosa composição dessa corte), sobre o critério de julgamento.

É chocante flagrar a proliferação desse sistema impiedoso do novo maquinário da instabilidade. Tudo se torna admissível, desde que resulte num espetáculo maior que o anterior. A sociedade, hipnotizada, torna-se cada vez mais refém desse mecanismo de subversão da ordem e do Estado de Direito.

Faz-se cada vez mais presente a advertência perturbadora de Giorgio Agamben, segundo quem, hoje, "a relação normal entre Estado e seus cidadãos é composta pela suspeita, pelo fichamento criminal e pelo controle". Isso nos empurra para a babel jurídica da qual decorre, inexoravelmente, a indisponibilidade do Estado de Direito que a duras penas implantamos.

Há quem queira nos convencer de que esse é o único caminho. Trata-se de uma escolha grave, que não pode ser atribuída de forma simplória aos desmandos e à corrupção, sistêmicos e históricos.

Ninguém questiona o combate maiúsculo à corrupção, mas deve ser um combate virtuoso. Não se justifica uma conspiração jurídica contra a política e contra o empresariado nacional, e muito menos o ataque à estrutura civilizatória que temos construído a partir da Constituição de 1988.

Falta-nos apenas o absurdo maior de judicializar e conter as ideologias, em radicalismo que seria tão funesto e assustador quanto a criação do crime de hermenêutica para juízes. Chegaremos ao ponto de fechar partidos políticos, tal como ocorreu na Espanha sob os desígnios do impetuoso, mas aplaudido, Baltasar Garzón?

Apesar de em tese ser possível a cassação de um presidente da República no TSE, considero-a, hoje, como mais uma potencialidade extremamente traumática inserida nesse novo maquinário.

Precisamos reagir, ou ao menos tirar algumas lições dessa situação para aperfeiçoar o sistema jurídico, sob pena de ingressarmos em um modelo de supremacia desse aparato persecutório-acusatório espetacular institucionalizado, que por vezes captura juízes e ministros –não todos, claro–, com redução insuportável do espaço democrático da sociedade.

CENÁRIO DRAMÁTICO

Operamos em um cenário dramático. A crise é muito mais estrutural do que um julgamento do TSE poderia capturar, pois exige medidas que vão além de controlar ou conter efeitos. O presidencialismo de coalizão e outros mecanismos (multiplicação de partidos sem alma e suas coligações espúrias, por exemplo) impulsionaram a crise atual, potencializando as vias destinadas à corrupção sistêmica.

Nossa prioridade é erradicar o sistema de loteamento dos domínios públicos, que se realiza num enraizado modelo de clientelismo.

Precisamos de um governo de alta capacidade, que pense o Brasil do futuro, dialogue com o presente e não se esqueça das lições do passado. Em vez disso, temos uma espécie de escambo político de postos e indicações em troca de votos e compadrio.

A saída não está no TSE. Todos nós sabemos disso, ao menos inconscientemente. Seria infantil esperar da corte eleitoral um passe de mágica. É preciso entender que teremos de caminhar por etapas, sobretudo com respeito ao Direito posto e à Constituição, nosso único porto seguro em tempos turbulentos.

Seja qual for a decisão do TSE, será apenas uma etapa nessa luta histórica pela melhoria do país –e é por isso imprescindível que ocorra nos limites do Estado de Direito.

Se houver prova cabal de abuso da chapa Dilma-Temer, o TSE pode e deve provocar a ruptura, na linha da tolerância zero com a corrupção, mas não deve ceder a qualquer tentação de condenar pelas circunstâncias, pelo conjunto das notícias ou por um bem maior, deixando de atuar nos limites de seu quadrante jurídico.


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