Folha de S. Paulo


Orgulho e vergonha numa Bienal de Veneza marcada pelo nacionalismo

Em tempos de bienal, os embarcadouros amanhecem cheios de taças abandonadas, vestígios de festas que avançaram noite adentro pelos palazzi nos canais de Veneza.

Num malabarismo logístico, desafiando o langor do vaporetto, o jet set da arte transforma a labiríntica cidade aquática num playground regado a prosecco. Os hotéis da Riva degli Schiavoni e os iates milionários atracados em frente tremem com a gargalhada dos marchands e artistas que fingem não dar a mínima para o mercado.

Mas o ritual que se repete a cada dois anos em torno da Bienal de Veneza também teve, em tempos de Donald Trump e de fortalecimento da direita, um nacionalismo mais exacerbado –e ao mesmo tempo envergonhado.

Única mostra global de arte contemporânea ainda a manter representações nacionais –pavilhões bancados pelos países de origem dos artistas–, o evento italiano, que abriu as portas há três semanas e vai até novembro, virou uma competição entre embaixadas, indo muito além da disputa por um cobiçado Leão de Ouro.

Divulgação
Instalação de Cinthia Marcelle, no pavilhão brasileiro na Bienal de Veneza
Instalação de Cinthia Marcelle, no pavilhão brasileiro na Bienal de Veneza

Mesmo que a Alemanha tenha vencido com seu espaço nos Giardini transformado pela artista Anne Imhof em bunker rodeado de cães raivosos, as festas oficiais cristalizaram outra frente de batalha, flexionando os músculos do soft power à beira da Laguna Veneta.

Mark Bradford, o artista negro e gay que representou os Estados Unidos sob Trump, fez um discurso de resistência ao ódio e à intolerância no Cipriani, hotel de bilhões de estrelas na ilha de Giudecca. O luxo da festa, aliás, contrastava com a cara de cortiço que o artista deu ao pavilhão americano, construído nos moldes neoclássicos da Casa Branca.

BEIJA-MÃO

Mais modesto, o pavilhão brasileiro abriu as portas sob uma garoa fina com o mesmo misto de orgulho e vergonha. Antônio Patriota, ex-chanceler brasileiro e agora embaixador na Itália, deu ares oficiais ao vernissage, mas se esquivou de fazer comentários políticos mais explícitos, a não ser elogiar a "serenidade" com que o Brasil enfrentou o impeachment de Dilma Rousseff e a transição para o atual governo –isso foi antes da bomba detonada pela delação da JBS.

Enquanto corria o beija-mão, a equipe de Cinthia Marcelle, que recebeu uma menção honrosa do júri por transformar o espaço brasileiro em algo que lembra uma prisão brutal, recomendava rasgar a página do catálogo em que aparece o nome do presidente Michel Temer.

DARK ROOM

Longe do conflito que opõe governo central e separatistas pró-Rússia, o bilionário ucraniano Victor Pinchuk encheu um palazzo com obras dos finalistas de seu prêmio Future Generation, entregue a nomes emergentes da arte contemporânea –as brasileiras Carla Chaim e Vivian Caccuri participam da mostra em cartaz ali.

Enquanto Chaim cobriu de papel carbono uma sala do palacete do século 15 à beira do canal Grande, Caccuri, revelação da última Bienal de São Paulo, criou uma espécie de altar com caixas de som numa alcova do lugar. Lá pelas tantas, sua instalação virou um dark room improvisado na balada de abertura, com curadores e artistas se livrando de certas peças de roupa e sensualizando para câmeras de celular.

Não muito longe dali, cobertos da cabeça aos pés com lençóis formando as palavras "poesia viva", atores comandados por Paulo Bruscky fizeram, no jardim da antiga mansão de Peggy Guggenheim, outra performance de carga política em tempos sombrios. Numa Bienal de Veneza marcada pela influência cada vez mais explícita de movimentos do mercado, o brasileiro refez a ação concebida durante a ditadura militar.

HOLLYWOOD

Em sintonia com o escapismo que dominou a mostra principal dessa Bienal, o britânico Damien Hirst mostrou não estar nem aí para qualquer crise e encheu a Punta della Dogana e o Palazzo Grassi de esculturas gigantescas.

Suas enormes estátuas de seres mitológicos de bronze e resina, algumas de três andares de altura, seriam relíquias resgatadas do naufrágio do barco de um colecionador da Antiguidade. Ele ironiza o mercado, ao mesmo tempo em que faz aquilo que se espera do mais alto escalão de uma indústria que perdeu a vergonha de imitar todos os truques da boa e velha Hollywood.

SILAS MARTÍ, 32, é repórter da Folha.


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