Folha de S. Paulo


Candido e seus prefácios generosos

Acervo Pessoal/José Salles Neto
Texto de Antonio Candido para livro de Jurandir Ferreira, em 2013
Texto de Antonio Candido para livro de Jurandir Ferreira, em 2013

O primeiro contato que tive com o mestre Antonio Candido –que outro tratamento poderia designá-lo sem cair na "idolatria" que muitos de nós amantes da literatura lhe dedicavam?– foi em meados de 2004, quando a Confraria dos Bibliófilos do Brasil estava planejando uma edição especial do livro "Os Ratos", do gaúcho Dyonélio Machado, com ilustrações do artista plástico Enio Squeff.

Espantei-me quando consegui o número do seu telefone com facilidade e fui prontamente atendido por ele com uma atenção e gentileza que só os homens públicos de espírito elevado possuem.

Após identificar-me, de forma objetiva, mas muita educada, ele perguntou: "No que posso ajudá-lo?". Eu, pego de surpresa, pois antes queria lhe falar sobre a edição, o autor, o ilustrador do livro, disse meio encabulado que buscava obter dele um prefácio para um livro da confraria.

Ele de imediato falou que não era muito aficionado dos prefácios e que ademais estava com algumas atividades que lhe ocupavam todo o tempo que ainda dedicava a trabalhar.

Respirei fundo e pedi que me escutasse por não mais que dois minutos, e ele, com uma voz pacienciosa, disse-me –nunca esqueço da expressão que usou: "Todos nós devemos ter alguns minutos para ouvir aqueles que nos procuram".

Expliquei o que era a confraria, com os livros compostos em linotipia, impressão em tipografia, encadernação manual e, finalizando, falei do autor, do título do livro e também do ilustrador.

Ele escutou tudo pacientemente, talvez por mais que os dois minutos que eu prometera, e de pronto me falou algo como: "Bem, mudou de figura. Primeiro, eu não sabia que ainda se faziam livros com tal tecnologia de antanho. Segundo, em se tratando de Dyonélio Machado e dos seus ratos, eu até gostaria de escrever algo a respeito, para esclarecer coisas que estão na minha cabeça há anos. Terceiro, parece-me que a sua edição vai ficar muito bonita com as ilustrações do Squeff, que sempre admirei, e eu tenho lá minhas vaidades, como qualquer outro".

O diálogo é fruto da minha memória, mas posso afirmar que está bem próximo daquilo que o crítico falou. Em seguida, pediu um prazo um bocado dilatado para as minhas pretensões, mas que obviamente acatei, e assim ficamos.

Em uns dez dias (o prazo que ele pedira era de 60), recebi pelos Correios, sem nenhum bilhete, um magnífico prefácio em três laudas, preparado em máquina datilográfica, com algumas emendas a caneta.

Quando ele recebeu os dois exemplares do livro a que fazia jus, ligou-me para elogiar a edição, mas fez um reparo quanto à reprodução de uma das ilustrações (em serigrafia), que, na opinião dele, tinha ficado muito reticulada. Ele tinha razão. Isso mostrou como era atento a tudo o que via.

Nosso segundo contato aconteceu em meados de 2013, quando de novo telefonei e mais uma vez fui por ele diretamente atendido. Antes que eu entrasse em qualquer assunto, informou-me que estava chegando do hospital, onde se submetera a uma cirurgia. Pediu desculpas e orientou-me a ligar dali a uns dez dias.

Telefono duas semanas depois, e ele, mais disposto, mostra que está com a memória afiada apesar dos seus 95 anos: lembra de tudo, do prefácio para "Os Ratos" e das características da edição de 2004. E, como era seu costume, pareceu-me, perguntou em que poderia ajudar-me. Falei que era sobre uma nova apresentação em outra edição da confraria.

Do outro lado, certamente com uma expressão de resignada paciência, falou-me (desse diálogo eu me lembro bem): "Meu filho, eu não estou mais escrevendo, estou adoentado, a vista está muito ruim".

Num exagero que hoje reconheço, falei: "Professor Antonio Candido, dessa vez é um escritor mais importante para você que o Dyonélio Machado". E ele, sem conseguir conter a curiosidade natural do homem de letras, perguntou o nome. Respondi, exclamando para valorizar a informação: "É o Jurandir Ferreira, de Poços de Caldas!".

E ele, com voz ainda resignada: "É a segunda vez que você me encurrala, agora mais fortemente. Pelo Jurandir eu levantaria da cova para escrever seja lá o que fosse. Passe-me seu endereço e em 30 dias eu lhe envio uma breve apresentação". E frisou, finalizando a conversa: "Breve".

Não passou uma semana e, num pequeno envelope, igualmente datilografada e com emendas, estava a breve, em uma lauda, apresentação para a edição do livro "Um Ladrão de Guarda-Chuvas"; com o romance, Jurandir, aos 89 anos, vencera o concurso literário Guimarães Rosa, do governo de Minas Gerais, em 1994.

JOSÉ SALLES NETO, 68, é presidente da Confraria dos Bibliófilos do Brasil.


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