Folha de S. Paulo


Como Roma inventou a guerra que os Estados Unidos praticam hoje

RESUMO Roma está nas raízes da cultura ocidental, assim como a Grécia, o judaísmo e o cristianismo. Um de seus maiores legados é a maneira de fazer a guerra e sua visão sobre o expansionismo. Para estudiosos, os Estados Unidos, potência mundial desde o fim da Segunda Guerra, repetem os passos da "república imperial".

Riccardo Spila/Grand Tour/Corbis
O fórum em Roma
O fórum em Roma

Sétimo Severo reinou o Império Romano de 193 d.C. a 211 d.C. De 197 a 199, esteve em campanha militar contra o Império Parta, na região onde hoje está o Iraque. Severo (146-211) conseguiu adquirir ali uma nova província para Roma, a Mesopotâmia. Ele até saqueou a capital parta, Ctesifonte, ao sul da atual Bagdá, e suas legiões chegaram ao golfo Pérsico.

A aventura no deserto não agradou a todos. Dião Cássio (c. 155-235), historiador e estadista romano de origem grega, comentou a aquisição da nova província por Severo: "Ele costumava declarar que tinha adicionado um vasto território para o império e o tornou um baluarte para a defesa da Síria. Ao contrário –a conquista foi uma fonte de guerras constantes e grande despesa para nós. Pois ela rende muito pouco e consome vastas somas".

Pausando em Roma em 2007 após sua primeira passagem pelo Iraque para escrever um novo livro sobre o conflito ("The Gamble: General David Petraeus and the American Military Adventure in Iraq, 2006-2008", a aposta: general David Petraeus e a aventura militar americana no Iraque), o historiador e jornalista americano Thomas E. Ricks visitou as ruínas do fórum.

Ele queria espairecer, pois desde 11 de setembro de 2001 não fazia outra coisa senão cobrir o Oriente Médio. De repente, ele depara com o arco erigido para comemorar a vitória de Severo na Mesopotâmia.

Ricks voltou a Roma em 2008, com o livro quase pronto, e sentou na colina capitolina (de onde surgiu o nome Capitólio, sede do Congresso dos EUA).

Naquela semana, tropas americanas estavam em combate na Síria, no Iraque, no Paquistão e no Afeganistão. "Quanto mais nós falamos em sair do Oriente Médio, mais profundamente parecemos nos engajar", escreveu o jornalista no epílogo do livro, "seguindo as pegadas de Alexandre, o Grande, dos romanos e dos britânicos".

Dião Cássio foi citado pelo historiador e romancista britânico Harry Sidebottom no livro "Ancient Warfare: A Very Short Introduction" (guerra antiga: uma introdução muito breve). O livrinho foi publicado em 2004, um ano depois de os americanos entrarem em guerra no mesmo local, algo que, hoje se percebe, também rendeu muito pouco e consumiu vastas somas.

Sidebottom lembrou o filme "Gladiador" (2000), de Ridley Scott. A cena inicial mostra legionários romanos, organizados e silenciosos, lutando contra bárbaros germânicos, barulhentos e desorganizados.

"De um lado estão romanos, em unidades disciplinadas com equipamento uniforme. Esperam em plena vista, em silêncio, e preparam suas armas de tecnologia relativamente alta", diz o historiador. "Do outro lado estão os bárbaros. Eles não têm unidades e, cobertos de peles, nenhuma uniformidade."

GUERRA OCIDENTAL

"De um lado está a civilização, do outro, a selvageria", escreve Sidebottom. O lado supostamente civilizado praticaria um suposto "modo ocidental da guerra", inventado por gregos, também praticado por romanos e, hoje, por americanos e outros representantes do Ocidente.

Essa visão se tornou frequente em livros populares, na TV e em filmes, graças sobretudo à influência dos trabalhos do historiador americano Victor Davis Hanson, notadamente "The Western Way of War: Infantry Battle in Classical Greece" (o modo ocidental de guerra: batalha de infantaria na Grécia clássica), "Por que o Ocidente Venceu - Massacre e Cultura - Da Grécia Antiga ao Vietnã" (Ediouro) e "The Father of Us All: War and History, Ancient and Modern" (o pai de todos nós: guerra e história, antiga e moderna).

Resumidamente, o guerreiro ocidental é um soldado-cidadão disciplinado, bem equipado com tecnologia moderna e que busca acima de tudo uma decisão rápida do conflito em um combate brutal. Mas até que ponto essa visão refletia, e ainda reflete, uma realidade?

Sidebottom, argumentando com os textos dos antigos gregos e romanos e uma análise da história militar subsequente, afirma sem dúvidas: o "modo ocidental da guerra" era e ainda é pura ideologia.

Os romanos eram a princípio soldados-cidadãos; depois, o império precisou criar um exército profissional. Os zulus do século 19 eram nesse sentido mais ocidentais que os britânicos que combateram...

Acreditar nesse "modo de guerrear" pode ser perigoso para "repúblicas imperiais" que consideram necessário policiar o planeta. Se o Ocidente tem a ilusão de que sempre vence no final, não há motivo para se preocupar hoje com Al Qaeda ou Estado Islâmico.

Desde que o poder econômico e militar dos Estados Unidos se tornou hegemônico depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), é comum chamar o país de "império", ou, paradoxalmente, "república imperial".

O período da história romana mais bem documentado, e sobre o qual é mais comum escrever, é a conturbada passagem de república a império. Depois de várias guerras civis e do fortalecimento de generais que eram na prática donos de suas tropas, era questão de tempo saber quem tomaria o poder absoluto. Poderia ter sido Pompeu Magno (106-48 a.C.), mas ele foi vencido por Júlio César (100-44 a.C.).

Para evitar que um general todo-poderoso tomasse o poder, a legislação romana dizia que nenhum deles entraria com suas tropas na Itália ao sul do riacho Rubicão, no norte da península.

César o fez, criando animosidade no Senado e nos velhos saudosos da república. Terminou assassinado no Senado em 44 a.C., mas seu herdeiro, Otávio (63 a.C.-14 d.C.), se transformaria no primeiro imperador e passaria a ser chamado de Augusto.

DE ROMA AOS EUA

O romancista britânico Tom Holland publicou "Rubicão - O Triunfo e a Tragédia da República Romana" (Record), no qual os personagens centrais são os grandes estadistas da época, como César, Pompeu, Crasso (114-53 a.C.), Cícero (106-43 a.C.) e Catão, o moço (95 a.C."" 46 a.C.).

O livro também serve para reflexão sobre a república atual. "Desde que comecei a escrever este livro, a comparação de Roma com os Estados Unidos de hoje vem se tornando um lugar-comum", escreve Holland no prefácio.

Os romanos eram em geral mais pragmáticos que os americanos. Os dois "impérios" procuravam justificar moral e legalmente suas intervenções. Os Estados Unidos cometeram erros político-militares graves intervindo na Coreia, no Vietnã, na Somália e agora em vários pontos do Oriente Médio.

Imperadores romanos, sobretudo os que não tinham muita experiência militar, precisavam mostrar serviço, como Claudius ao invadir a Grã-Bretanha. Mas, de modo geral, a grande expansão territorial ocorreu na república.

Augusto e muitos dos seus sucessores procuraram evitar aventuras. Roma conquistava apenas regiões que podiam ser rentáveis pela colonização ou coleta de impostos, por isso as fronteiras do império pouco mudaram.

A comparação entre Roma e EUA é ainda mais antiga, como mostrou o cientista político francês Raymond Aron em seu clássico de 1973, "República Imperial - Os Estados Unidos no Mundo do Pós-Guerra" (Zahar). Tanto Roma como os EUA seriam superpotências expansionistas e militarizadas, mas poderiam também levar uma forma de civilização aos "bárbaros".

Depois da Segunda Guerra, "pela primeira vez na história, assim se exprimiam os comentadores há 25 anos, uma república elevou-se à proeminência sem haver aspirado à glória de reinar. Como preço de sua vitória, deve encarregar-se da metade do mundo, garantir a segurança dos europeus, debilitados demais para se defenderem sozinhos, preocupar-se com regiões inteiras do planeta prestes a soçobrar no caos", escreveu Aron.

Os gregos antigos tinham relações públicas bem melhores que seus colegas romanos. A Grécia antiga, no imaginário popular moderno, é sinônimo de democracia, filosofia, teatro, poesia...

A imagem de Roma é bem pior. Era uma espécie de irmão mais novo e bravinho, sempre disposto a estabelecer conflito. E só se interessaria por coisas práticas, o que explica seu amor pela engenharia e pela guerra. Pontes, aquedutos, estradas e fortificações seriam a marca da civilização romana, assim como o direito.

FÃS

"Principalmente no ensino de história, nós não devemos nos deter face ao estudo da Antiguidade. A história romana, corretamente entendida em suas linhas básicas, é, e continua sendo, o melhor professor, não apenas para hoje, mas provavelmente para todos os tempos."

Faz sentido. Mas quem disse isso? Hitler, no seu abominável livro "Minha Luta", publicado antes da Segunda Guerra. Ele não foi o único a louvar Roma pelos piores motivos.

"Eu amo César. O maior entre todos os homens que já existiram", escreveu Mussolini, líder fascista da Itália. Com admiradores como esses, fica difícil defender o legado da civilização romana. Mas é possível –e certamente necessário. Grécia e Roma, assim como o judaísmo e o cristianismo, são as bases da civilização ocidental.

Mary Beard, historiadora britânica de Cambridge, em"SPQR: Uma História da Roma Antiga" (Crítica), foi direto ao ponto: "Ignorar os romanos não é apenas virar um olho cego para o passado distante. Roma ainda ajuda a definir o modo como nós entendemos nosso mundo e pensamos sobre nós próprios, da alta teoria até a baixa comédia".

"SPQR" significa "Senatus Populusque Romanus", ou seja, "o Senado e o povo romano". Era a própria definição da república e depois império, uma combinação entre a aristocracia e a plebe.

Se os gregos "roubaram" a ideia de democracia –que nem era tão perfeita entre eles e se restringia a poucas cidades-Estado–, os romanos deixaram ideais de liberdade e cidadania. Basta ver que a palavra "república" vem do latim, "res publica", a coisa pública.

Beard optou por terminar "SPQR" em 212 d.C., quando a cidadania romana foi estendida a todos os habitantes livres do império. É sem dúvida um fato politicamente mais significativo do que a tomada de Roma por bárbaros em 476 d.C., quando o Império do Ocidente já era algo insignificante.

César, Pompeu, Crasso, Cícero e Catão apareceram também em filmes e minisséries de TV. Uma das melhores de todos os tempos, "Roma", teve duas temporadas, entre 2005 e 2007. Bem antes disso, porém, já havia uma série de filmes do que se poderia chamar de gênero "sandália e espada". Alguns são clássicos, como "Spartacus" (1960), de Stanley Kubrick, que conta a história do escravo treinando para ser gladiador.

Hollywood tinha sua própria noção do que Roma representava e queria então mostrar a ligação dessa Roma mítica e antiga com as noções totalitárias de nazistas, fascistas e comunistas.

Nas palavras do historiador britânico Adrian Goldsworthy no livro "Roman Warfare" (guerra romana), "o exército romano mudou o mundo, criando um império cujo legado ainda é sentido hoje. O domínio do Ocidente nos últimos séculos estendeu tanto as línguas como o sistema legal através do globo".

Tanto Roma como os Estados Unidos têm na águia um dos seus principais símbolos. Havia águias nas bandeiras da Rússia e da Prússia, cujos monarcas têm títulos (czar e kaiser) derivados do nome de César.

Como afirmou Mary Beard, "depois de 2.000 anos, ela [Roma] continua a sustentar a cultura e a política ocidentais, o que nós escrevemos e como nós vemos o mundo, e nosso lugar nele".

RICARDO BONALUME NETO, 56, é repórter da Folha.


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