Folha de S. Paulo


Candido superestimou modernismo e ignorou singularidades regionais

RESUMO Professor de letras da UFRGS e crítico lembra importância de Antonio Candido para a interpretação da literatura brasileira, mas destaca o que considera inconsistências. Entre elas estão o protagonismo concedido pelo teórico ao modernismo paulistano e a negação de especificidades regionais nas obras de ficção do país. Leia ainda na "Ilustríssima": texto de Carlos Berriel sobre a aproximação que Candido fez entre literatura e sociedade; carta que o poeta Armando Freitas Filho estava escrevendo a Candido; texto inédito do crítico; e Arquivo Aberto de José Salles Neto.

Gentil, ético, alinhado com a esquerda democrática, escritor de texto preciso e elegante, comunicativo e inteligente, compreensível sempre, antipedante, criativo nas interpretações, certeiro nos diagnósticos de qualidade, abrangente e cosmopolita, capaz de leituras que estruturam visadas de conjunto correlacionando literatura e sociedade, respeitoso das diferenças, interessado na educação para todos, frequentador dos registros mais sofisticados das letras, mas apreciador da prosa ao rés do chão e da canção singela.

Antonio Candido foi de fato tudo isso, com resultados espalhados em preciosas centenas de páginas impressas, em livros e periódicos, que permanecerão como marcos de seu tempo.

Dois outros merecidos elogios não apareceram nos necrológios. Primeiro: o pensamento crítico que estruturou sua obra, sobretudo dos anos 1940 aos 1960, era laico e não dogmático, fazendo nisso um saudável contraponto a correntes críticas que desde o Rio de Janeiro espalhavam sua voz pelas universidades e escolas brasileiras.

Candido disputou a compreensão da literatura brasileira com a visada católica essencialista de Alceu Amoroso Lima (1893-1983), assim como com a perspectiva formalista e algo arrogante de Afrânio Coutinho (1911-2000). Por vezes, aproximou-se da concepção de Nelson Werneck Sodré (1911-99), mas dela acabava se distinguindo pela interpretação muito mais aberta da história.

Segundo: boa parte de suas formulações críticas e historiográficas tem a virtude de oferecer modelos para quem veio depois. Modelos, não camisas de força.

Suas formulações sobre o sistema literário, sobre a formação da literatura brasileira, sobre a dialética do interno e do externo na obra literária e outras mais específicas, como a dialética da malandragem ou as súmulas sobre amplos conjuntos de fenômenos (o nexo entre literatura e subdesenvolvimento), todas elas iluminam seu objeto específico ao mesmo tempo em que proporcionam extrapolações e analogias.

Mas, como qualquer outra obra do pensamento, as ideias de Candido carregam as restrições de seu tempo e sua circunstância. Esboço a seguir três limites de sua atividade crítica, compreendendo que esse exercício é uma homenagem ao grande professor recém-falecido, figura central em minha formação e atuação profissional.

SUPREMACIA DE SP

A trajetória e a obra de Candido acompanham, na face letrada, o processo de construção da supremacia de São Paulo sobre o país. Não apenas no sentido elementar da USP e da força avassaladora da economia paulista mas também no sentido sutil da entronização da uma nova interpretação do Brasil.

Contrariando a ênfase historiográfica na controvérsia da origem (quando teria começado a literatura no Brasil?), Candido propôs uma visão processual –a literatura não nasce, mas se forma num continuum entre o arcadismo e o romantismo– e uma perspectiva teleológica, que sugere haver um ponto ótimo do processo no futuro.

Qual futuro? Nominalmente, em Machado de Assis, em cuja obra veríamos realizada a formação. Ótimo, mas contraditório com uma premissa do próprio esquema candidiano, que requeria leitores para que uma literatura nascente fosse reconhecível como formada.

Ora, mesmo no fim da vida de Machado leitor era coisa raríssima.

Onde então estaria o ponto de chegada da formação? Candido não diz assim, mas me parece possível deduzir que tal ponto estaria no modernismo paulistano. Em lugar de dois momentos decisivos no processo formativo da literatura brasileira, há de fato três, sendo o derradeiro aquele que Candido tratou de entronizar.

Não, não é ruim que as obras modernistas tenham sido incorporadas ao repertório geral brasileiro. Só é ruim que sejam consideradas um ponto inultrapassável da criação artística nacional, a ponto de figurarem, ainda hoje, como critérios de excelência.

Assim, Candido representa a face letrada, humanista, culta, elegante e profunda da dominação que nos preside, que tem uma encarnação terrível na absurda centralidade de Brasília sobre a nação, outra na inaceitável concentração econômica em São Paulo e outra ainda na nefasta perspectiva centrípeta modernistocêntrica.

BRASIL UNO

Correlata é a visão unitarista sobre o conjunto variado do Brasil. Ecoando aquele Getúlio Vargas que proibiu os hinos e bandeiras estaduais, Candido argumentou várias vezes contra concepções infranacionais do fenômeno cultural. Sua convicção ia na mesma direção da de Mário de Andrade, para quem tudo que se fizesse no Brasil era brasileiro –o que implicava não haver direito de ser menos do que brasileiro.

Exemplo disso se lê em ensaio de 1954, por ocasião do quarto centenário de São Paulo: "Se não existe literatura paulista, gaúcha ou pernambucana, há sem dúvida uma literatura brasileira manifestando-se de modo diferente nos diversos Estados", afirmou, em jogo de palavras que impunha o nacional como algo essencial, sem prejuízo de, numa ocasião comemorativa localista, poder o material literário ser arranjado em modo particular.

Candido estava longe de ser um comissário de partido totalitário; não se pode imaginar sua doçura no trato pessoal e sua largueza de vistas compactuando com censura. Mas é certo que sua atuação foi no mesmo sentido unificador obsessivamente reiterado pelo poder no Brasil, desde o império até agora.

Em sua obra, vamos encontrar uma saudável ruptura com o acanhamento provinciano que tantas vezes embretou a discussão e até a produção da literatura no Brasil em marcos nacionalistas. Por formação e convicção, nosso crítico foi cosmopolita. Por isso mesmo, vale examinar seu comparatismo nos textos que publicou.

Aprendemos com Candido a excelente lição da seleção de termos comparativos adequados. Assim foi com "A Letra Escarlate" (Nathaniel Hawthorne), tomada como parâmetro de contraste para as "Memórias de um Sargento de Milícias" (Manuel Antônio de Almeida), ou com o paralelo entre "L'Assomoir" (Émile Zola) e "O Cortiço" (Aluísio Azevedo).

Noutro sentido, porém, a perspectiva candidiana se mostra problemática, como na famosa "Formação da Literatura Brasileira". É bem verdade que nela Candido supera paradigmas velhos e empobrecedores do debate, como a tese das "influências" estrangeiras ou como o cediço antilusitanismo. Mas está lá um conjunto de afirmações e postulados que agora precisam ser reavaliados.

LÍNGUA PÁTRIA

É o caso da pista escorregadia escolhida por Candido para dizer que "um francês, um italiano, um inglês, um alemão, mesmo um russo e um espanhol" podem só conhecer os autores da sua terra e, não obstante, encontrar neles o suficiente para experimentar "as mais altas emoções literárias", coisa que seria "impensável no caso de um português" e mais ainda de um brasileiro. Na superfície, um contraste justo, mas basta tomar pequena distância para verificar que há excessiva desproporção nos termos.

A correspondência entre língua e nacionalidade deforma a comparação. No caso mais gritante de impropriedade, um inglês de fato lê como sua a literatura de sua língua que não pertence apenas a seu país –pensemos no papel dos autores irlandeses.

Por outro lado, é de perguntar por que, no estudo sobre a literatura brasileira, atento ao fato de que se tratava de país jovem do Novo Mundo, não ocorreu a Candido cotejar o Brasil com a Argentina ou os EUA, países com quem o Brasil compartilha inúmeras afinidades.

Candido representa o tempo inicial da universidade brasileira, aristocrática e francófila, e uma época da cultura ocidental, com a literatura no centro do campo público de forças em confronto.

As duas coisas passaram, para o bem e para o mal; mas seu rastro, para nossa sorte, foi acompanhado por uma inteligência fina, que nos cabe ler, apreciar e criticar adequadamente.

LUÍS AUGUSTO FISCHER, 59, professor de literatura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é autor de "Machado e Borges" (Arquipélago) e de "Duas Formações, uma História", uma reflexão sobre as condições para uma nova história da literatura brasileira, a partir de Candido e de Roberto Schwarz (inédito).


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