Folha de S. Paulo


Trunfo de Antonio Candido foi aproximar literatura e sociedade

RESUMO Professor da Unicamp repassa linhas de força do pensamento de Antonio Candido (1918-2017) sobre a constituição de uma identidade literária brasileira. Autor lembra que sistema teórico estabelecido pelo crítico incorporava contribuições da história e da sociologia na busca de um "específico nacional" indelével. Leia ainda na "Ilustríssima": texto de Luís Augusto Fischer sobre os limites das teorias de Candido; carta que o poeta Armando Freitas Filho estava escrevendo a Candido; texto inédito do crítico; e Arquivo Aberto de José Salles Neto.

Acervo Pessoal
Antonio Candido em Bofete (SP), em janeiro de 1948
Antonio Candido em Bofete (SP), em janeiro de 1948

Antonio Candido foi, como todos sabem, um notável crítico e historiador de literatura, um currículo suficiente para preencher com dignidade toda uma existência. Mas excedeu essa condição, pois foi membro de uma geração de intelectuais que alterou o modo de investigação e análise dos fenômenos culturais, além de criar instituições e animar gerações de pesquisadores. Avaliar a área de sua sombra de influência não é fácil.

A chave para compreender o sentido de sua obra está, suponho, no seu método crítico. Candido e utilizava uma visão integrada da história, juntava com rigor literatura e sociedade, uma prática que obriga à junção dos vários campos do conhecimento da realidade histórica. Era avesso à compreensão da história em migalhas, tornada moda mais tarde.

Segundo a concepção de Candido, interessam para a compreensão de uma obra literária ou artística as circunstâncias históricas de sua composição. Assim, as obras e seus gêneros dependem de um quadro geral, societário; não são produzidas a esmo.

Uma tragédia grega, por exemplo, só pôde ser composta na atmosfera da pólis antiga, na cultura ática. Dê a qualquer pessoa papel e caneta, e ela jamais escreverá uma tragédia ática –a não ser como peça de lamentável kitsch ou "ersatz". O que o impede? A sociedade e suas determinações literárias.

Isso não significa aceitar a tese de uma determinação mecânica da sociedade sobre a literatura, mas algo bem diverso: a obra literária é produto de uma individualidade humana, composta de atos subjetivos, mas esse indivíduo não existe num vácuo conceitual, como a mente cartesiana ao fim do processo ideal de cancelamento do mundo real. A individualidade é, essencialmente, resultado sempre singular de uma miríade de determinações do mundo real.

Candido, ao mesmo tempo em que aceitava as influências extraliterárias sobre a literatura, pressupunha que, no sentido inverso, os construtos culturais exerciam concretas determinações sobre a vida social como um todo, compondo um conjunto de conceitos ideais que dão forma, sentido e razão às práticas sociais em geral.

CONDIÇÃO COLONIAL

Esse pressuposto organiza suas obras, notadamente "Formação da Literatura Brasileira - Momentos Decisivos" (1959), em que Candido expõe o processo de formação de uma sensibilidade literária, de uma prática de observação e de formalização não condizente por inteiro com o que se produzia nos centros hegemônicos, mas que traduzia nossa condição de colônia.

O que ele buscava era a captação de nossa especificidade, dos sintomas estéticos de uma nacionalidade em processo de construção e de autonomização expressional. Efetivamente, a literatura brasileira já estaria formada, já teria completado sua gestação, possibilitando a exuberância que se observa a partir de Machado de Assis –ele mesmo herdeiro desse sistema literário já adulto.

Roberto Schwarz, em texto já clássico sobre o ensaio de Candido a respeito de "Memórias de um Sargento de Milícias", buscou expor os pressupostos da "dialética da malandragem", conceito central desse estudo.

Para Candido, o personagem central, Leonardo, não poderia ser um pícaro, próprio do romance picaresco, porque faltavam ao Brasil as condições essenciais para a composição desse gênero.

O movimento dos personagens picarescos só poderia se dar numa sociedade cujos estamentos tradicionais estivessem em decomposição, cruz e coroa contorcendo-se com a entrada do ouro fácil advindo das colônias de exploração. Era, portanto, gênero específico de metrópoles como Espanha e Portugal, e um pouco de França e Inglaterra. Jamais de uma colônia, ela sim exportadora desse ouro.

Se a Espanha possuía uma sociedade com resquícios medievais e simultaneamente uma nova elite em ascensão, o Brasil de Manuel Antônio de Almeida desconhecia tradição e mobilidade social. Faleciam as condições históricas para que pudéssemos produzir pícaros.

MALANDRO

Não tendo pícaros, produzíamos um malandro original, evidenciando uma matriz literária nova sob o sol das letras. Certo, partimos de um tronco literário comum com a Europa, mas importa localizar nossa particularidade. A leitura dos estudos de Candido permite ver –para surpresa de muitos– que o Brasil faz sentido.

A exigência feita pelo crítico de que os estudos literários busquem determinar o específico nacional vem em conexão com sua rejeição a universais abstratos, cujo uso impede de identificar o que é propriamente nacional nas obras literárias.

Assim, a simples classificação de um romance brasileiro dentro desse gênero não basta: é preciso apurar o quanto a obra tem do específico nacional em sua forma. Importa detectar a constituição tão gradual quanto irregular da nacionalidade.

Da mesma forma, Antonio Candido considerava como menor a análise literária marcada por um particularismo cego e mudo para as determinações sociais implícitas, para a complexidade histórica sintetizada na obra, ou seja, fechada num formalismo raso.

Alguns críticos de seu método julgaram haver ali uma teleologia ingênua. Para eles, é como se Candido sugerisse que o poeta árcade Claudio Manuel da Costa (1729-89) sabia que sua obra desaguaria em Machado de Assis (1839-1908).

Para Candido, pelo contrário, teria sido Machado que incorporou elementos de formalização literária já em germe nos objetos da poesia do arcadismo mineiro. Ou seja, é a leitura e a análise posterior que permite identificar traços comuns, que vão se intensificando e permitindo ver uma linha evolutiva problemática a conectar autores e obras.

IRRADIAÇÃO TEÓRICA

Isso permite, então, que o pensamento de Candido seja usado em vários campos da interpretação do Brasil. Sua teoria sobre a literatura nacional possui tal alcance que convida os demais campos da crítica cultural a acertar o passo com ela.

Candido, é claro, não trabalhou sozinho: em 1941, participou da fundação da revista "Clima", em companhia de Paulo Emílio Sales Gomes, Décio de Almeida Prado, Ruy Coelho, Gilda de Mello e Souza e Lourival Gomes Machado –os "chato-boys". Havia certamente muitos pontos em comum nas indagações desse "dream team" da crítica, e as influências foram recíprocas e profundas.

Sales Gomes esteve para o cinema brasileiro como Candido para a literatura nacional. Seu ensaio "Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento" (1973), no qual recapitula a formação do cinema brasileiro sob uma visada histórico-social, elevou-o a criador do ensaio cinematográfico no Brasil e guarda semelhanças com a "Formação da Literatura Brasileira".

Ambas as obras recompõem o caminho percorrido pelas artes a que dizem respeito, estabelecendo no percurso os traços particulares de sua produção nas condições específicas do país.

Para Sales Gomes, "o cinema norte-americano, o japonês e, em geral, o europeu, nunca foram subdesenvolvidos, ao passo que o hindu, o árabe e o brasileiro nunca deixaram de ser. Em cinema, o subdesenvolvimento não é uma etapa [...]: os filmes dos países desenvolvidos nunca passaram por essa situação, enquanto os outros tendem a se instalar nela. O cinema é incapaz de encontrar dentro de si próprio energias que lhe permitam escapar à condenação do subdesenvolvimento [...]".

No caso específico do cinema brasileiro, diz Sales Gomes, "nada nos é estrangeiro, pois tudo é". Um de seus argumentos principais era de que não há uma identidade nacional já formada. Assim, toda cultura importada é aceita sem uma assimilação completa –tupis e alaúdes. Jacobinamente, o crítico defendia os valores do cinema brasileiro nos anos 1960 e 1970, quando julgava já ser real a emancipação expressional daquele.

A obra de Candido propôs questões que não foram completamente resolvidas por ele, ficaram como sugestões permanentes, problemas ásperos às vezes, e continuam à espera dos pesquisadores. A sua teoria sobre o modernismo, talvez a mais profunda e abrangente no conjunto de sua obra, colocou questões de ordem política e econômica que ele mesmo não se dispôs a resolver.

DIVISÃO NA ELITE

Pressupondo que o movimento de 1922 e a oligarquia do café possuíam um vínculo real, dispôs aos pesquisadores a necessidade de estabelecer como se dava, no concreto histórico, tal vínculo: um problema para a alçada da história econômica e para a dos partidos políticos da República Velha. Afinal, a estrutura oligárquica paulista, antes de 1922, identificava-se com as artes e as letras tradicionais –parnasianos e acadêmicos.

A resposta estaria no estabelecimento de dois segmentos oligárquicos cafeeiros divergentes, um do vale do Paraíba –arcaico e subordinado ao capital inglês– e outro, esse sim com um projeto de nação, situado ao longo da Estrada de Ferro Paulista, ocupando as terras roxas e outras terras.

Esse segundo grupo, que buscou emancipar a economia cafeicultora com a fundação de dispositivos econômicos com capital paulista –casas exportadoras, linhas de trem, política externa, jornais e partidos–, patrocinou, sob a liderança de Paulo Prado, a Semana de Arte Moderna. A emancipação econômica paulista viria com a emancipação expressional. Sem Candido, o conhecimento desses aspectos da vida econômica e política não viria à tona tão cedo.

Lendo o cientista social que está em "Os Parceiros do Rio Bonito - Estudo sobre o Caipira Paulista e a Transformação dos Seus Meios de Vida" (1964), observamos que Candido adianta várias questões até hoje centrais.

A cultura caipira não mais existe –como todas as formas de cultura popular que já houve no país. A população que a praticava foi devastada pela industrialização e pela modernização falhada do Brasil, que destruiu a vida do camponês sem lhe dar, em troca, a cidadania. Tirou-lhe o campo e não lhe deu a cidade, mas sim a sub urbe, a periferia. Arrasou-lhe a cultura popular e não lhe deu a urbana –Einstein, Freud, Marx, escolas, direitos–, mas sim a brutalidade da cultura de massas estupidificante.

Pasolini, aliás, veio mais tarde a se interessar por idêntica problemática, vendo na cultura de massa a destruição tanto da cultura erudita quanto da popular. O que explica muitas coisas dos caóticos dias que vivemos.

A ideia de uma nação brasileira existente nas letras, telas e partituras, mas não no Estado, pode ser uma chave para entender Antonio Candido, homem e obra. Sua ação crítica deslocou-se da velha e perene máquina de escrever para a rua, e de lá sempre retornou. Ida e volta, sempre.

Este foi grande homem, e este é um grande dia para escrever sobre ele.

CARLOS BERRIEL, 64, professor livre-docente de teoria literária da Unicamp, é fundador e editor da revista "Morus - Utopia e Renascimento".


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