Folha de S. Paulo


Leia texto inédito do crítico Antonio Candido para livro de artista plástica

Susana Prizendt/Acervo pessoal
Colagem de Susana Prizendt enviada a Antonio Candido
Colagem de Susana Prizendt enviada a Antonio Candido

Leia ainda na "Ilustríssima": texto de Carlos Berriel sobre a aproximação que Candido fez entre literatura e sociedade;texto de Luís Augusto Fischer sobre os limites das teorias de Candido; carta que o poeta Armando Freitas Filho estava escrevendo a Candido; e Arquivo Aberto de José Salles Neto.

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Em face de um estímulo como este, o que poderia configurar-se como diário de fatos e reflexões torna-se aventura de deciframento. É como se o caderno deixasse de ser registro para transformar-se em "chave dos sonhos".

Vejo um rosto esquartelado em brasão: primeiro e terceiro, de ouro; segundo e quarto, de goles. Mas um brasão dotado de vida, a nos fixar obsessivamente, como se contivesse o olho tradicional de Deus, ou o da consciência, que perseguiu Caim do outro lado do Paraíso.

Presos em nós, esses olhos estão presos eles próprios na sua cruz interrompida, pois o começo da haste teve de se retirar para dar espaço à boca, talvez desejosa de bradar. Quereria dizer alguma coisa simbolizada pelas "figuras" (também chamadas "peças" ou "móveis") dessa heráldica singular? Serão essas figuras lágrimas vermelhas e coroas cor de carne, que valem para os dois lados, como carta de baralho?

Ante essa linguagem cifrada e reversível, feita de forma e cor, as palavras parecem intrusas. O professor semeia? O projetista semeia também? O velho professor se sente reduzido à mudez e prefere concordar com a afirmação que sela para todo o sempre a boca do rosto-brasão. Tudo o que pudesse dizer iria apenas descolorir artificialmente esse mundo cerrado sobre as suas peças, os seus metais e os seus esmaltes.

Nota: Este texto, de 2005, integra o livro "Nosso Diário" (inédito), de Susana Prizendt, em que pessoas escrevem a partir de imagens enviadas pela autora.

ANTONIO CANDIDO (1918-2017), crítico literário e sociólogo, morreu no dia 12/5.


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