Folha de S. Paulo


A última carta do poeta Armando Freitas Filho a Antonio Candido

RESUMO O poeta carioca se correspondia com Candido havia ao menos 20 anos. Os missivistas versavam sobre livros, trocavam poemas e narravam anedotas. No texto abaixo, Freitas relembra a descoberta dos escritos do intelectual. Ele cedeu à Folha a carta que enviaria ao amigo em julho, por ocasião do aniversário do crítico. Leia ainda na "Ilustríssima": texto de Carlos Berriel sobre a aproximação que Candido fez entre literatura e sociedade;texto de Luís Augusto Fischer sobre os limites das teorias de Candido; texto inédito do crítico; e Arquivo Aberto de José Salles Neto.

Julia Moraes-3.nov.2006/Folhapress
O crítico e professor na biblioteca de sua casa, em São Paulo, em 2006
O crítico e professor na biblioteca de sua casa, em São Paulo, em 2006

Admiro Antonio Candido há muito tempo. Primeiro pelos livros e ainda pelo conhecimento que ele tinha de minha família e pela forma como falava dela. Fui um rapaz rebelde e cismei que não ia fazer faculdade, para desgosto dos meus pais; preferia, entre outras coisas, "fazer" Antonio Candido, que era muito mais do que uma faculdade, ele era uma universidade inteira. Alfredo Bosi um dia me contou o que o Guimarães Rosa tinha dito: "Se Antonio Candido não existisse, ele teria que ser inventado".

Concordo plenamente. Quem eu seria sem o apoio de sua obra? O poeta que consegui ser? Seria possível, mas seria um poeta muito menor do que eu sou, sem sombra de dúvida. Quando o conheci pessoalmente, faz 20 e poucos anos, o fascínio aumentou. Não sou dado a fanatismos, mas durante os meus ainda verdes anos, Carlos Drummond, e um pouco mais tarde Antonio Candido, foram os encontros primordiais da minha vida. Foi meu pai que me deu esse empurrão, preocupado que estava comigo lendo sempre, trancado em casa.

Só consegui sair desse comportamento obsessivo por intermédio dos dois, pois me deram calma e segurança lendo e ouvindo o que falavam, não só a mim, mas a todos que os liam e escutavam.

Já tinha começado a escrever poesia, e aos 20 anos, Manuel Bandeira, graças a um pedido de Cleonice Berardinelli, me recebeu no seu apartamento adorável, leu os meus originais com agrado e me recomendou a José Guilherme Merquior, um ano mais moço, para que me orientasse na busca de uma editora ou de uma resma de papel, que acabou me sendo cedida generosamente por Fernando Sabino, dono da Editora do Autor, o que me permitiu publicar o meu primeiro livro por conta própria.

As conversas infindas eram sensacionais. Assunto preferido: Antonio Candido. Competíamos até um pouco, eu e Zé Guilherme, para ver quem estava mais a par do que ele pensava e escrevia. Sem saber, ele nos construiu com rigor e generosidade, sentimentos raros de andarem tão juntos.

O que nos encantava era a capacidade que ele tinha de destrinchar, com absoluta clareza e elegância, pontos teóricos difíceis. Um autêntico erudito que sabia trocar em miúdos questões complexas sem nenhum jargão empolado e sem perder um centímetro de qualidade da questão em pauta. Muitas vezes eu bati na minha testa –batia mesmo– e rosnava baixinho: "Como eu não pensei isso antes?".

Tinha um grupo de amigos todos sofrendo com o golpe de 64, antecessor deste de agora, e a presença no ambiente cultural de Antonio Candido, Sérgio Buarque de Holanda, Mario Pedrosa e Ferreira Gullar nos amparava muito; sermos contemporâneos de pessoas assim mantinha nossa esperança.

Mais adiante, constatei que tudo que Candido falava era no mesmo tom de voz, usado na palestra em sala de conferência ou na sala de estar de sua casa. Ele era encantador, um mágico, imitava à perfeição várias pessoas; um dia imitou a gesticulação da minha avó, uma senhora que conversava com muito saber e ênfase, e fiquei embasbacado. Afinal, ela já tinha morrido havia muitos anos.

Recordo-me da última visita ao Rio, se não estou em erro, quando Candido falou com sua verve inimitável sobre a correspondência entre Mário de Andrade e Pio Corrêa, respectivamente, primo e tio-avô de Gilda, sua mulher. Foi emocionante, pois há muito tempo não o víamos. Pena não ter sido gravado, mas ele me deu seus apontamentos. Quando a palestra terminou, pude dizer em alto e bom som: "Quando Antonio Candido fala, o Brasil existe".

A carta abaixo estava sendo feita para o seu aniversário, em julho. Gostava de escrever para Antonio Candido com antecedência, a fim de ter tempo para caprichar até não poder mais, com a minha amizade por ele bem inspirada na minha mão e no meu coração. Ele morreu, mas a lembrança da sua voz escrita e falada nos ajudará sempre.

*

Dever
Armando Freitas Filho
l
Comprar

Antonio Candido:
Gosto tanto de você. Parece que o conheço desde que nasci, pois é tão parecido com a gente da minha família: modo de ser, de se vestir, de falar, de ficar indignado. Neste dia em que escrevo, bem que gostaria de lhe dar um abraço daqueles apertados e até um beijo. Mas se não vou até aí, é porque não consegui me desvencilhar do medo fóbico que tenho de viagens e de avião. De todo modo, a distância que me separa de você, eu a venço com a sua lembrança. Penso no que eu poderia dizer e ouvir, construo conversas imaginárias que me parecem reais, já que tenho de cor o som de sua voz acompanhada por sua gesticulação de dedos compridos e finos como os de Murilo Mendes. É como ouvir e ver uma música e sua regência dentro de mim. Com todo o afeto e saudade de Cristina e Armando.

ARMANDO FREITAS FILHO, 77, poeta, é autor de "Dever" (Companhia das Letras).


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