Folha de S. Paulo


Filho de cientistas diz faltar visão na pesquisa do Brasil

Michel Nussenzweig, 62, filho mais velho de Ruth e Victor, deixou o Brasil quando tinha nove anos. Hoje se sente mais confortável falando inglês, não português, e também já vai perdendo a esperança de fazer ciência em seu país de origem.

Não que ele não tenha tentado. "Adoraria fazer algo no Brasil, mas todos os meus esforços fracassaram", lamenta. "Não entendo como a ciência é organizada no país. Vindo de fora, como um forasteiro, provavelmente não é possível [fazer pesquisa]."

Reprodução

Treinado tanto para a prática clínica quanto para a pesquisa básica em algumas das melhores instituições de biomedicina dos Estados Unidos, ele se especializou num dos temas mais quentes do momento para esse campo: os anticorpos, que estuda, entre outras coisas, para entender a ação do vírus da Aids (HIV).

O cientista diz que chegou a enviar um pedido de financiamento a uma instituição de fomento brasileira, cujo nome diz não lembrar. Seria para implantar no país um laboratório de clonagem de anticorpos humanos, que seu grupo na Universidade Rockefeller está aplicando em tratamentos atualmente em fase final de testes.

"Esses métodos para a identificação de anticorpos podem ser usados numa variedade de problemas do Brasil", diz. Coisas como o tratamento do tétano ou de picadas de cobras e aranhas.

Segundo Nussenzweig, o Instituto Butantan, em São Paulo, ainda utiliza "tecnologias do século 19" para enfrentar essas ocorrências, como soro de cavalos. O tratamento poderia ser aperfeiçoado, assegura, com o emprego de anticorpos monoclonais.

BENEFÍCIOS

Além disso, remédios baseados em anticorpos ocupam metade da lista dos dez mais rentáveis do mundo. "São drogas importantes para o futuro", afirma o médico e pesquisador, para acentuar as vantagens que essa tecnologia traria para o Brasil.

Ainda assim, seu pedido foi recusado, sob a alegação de que o projeto era "translacional demais", ou seja, sem interesse científico suficiente, de baixo potencial de descoberta. "O que [os pareceristas] não perceberam foi que, aplicando essas técnicas aos problemas brasileiros, haveria muito a aprender."

Sua produção científica, ele acredita, deveria ser credencial suficiente para lastrear o financiamento.

"Se você olhar minha lista de publicações, provavelmente assinei mais artigos em [periódicos como] 'Cell', 'Nature' e 'Science' nos últimos cinco ou dez anos do que o Brasil inteiro."

Uma pesquisa no diretório PubMed com o nome de Michel Nussenzweig revela 230 trabalhos publicados, dos quais 75 nas revistas mencionadas. "Sem querer me gabar, sou um cientista bem-sucedido."

Nussenzweig dá um exemplo mais recente de frustração com pesquisadores brasileiros, desta vez envolvendo as agruras para coletar exemplares do vírus da zika. Algumas mães infectadas enfrentam problemas com seus filhos, outras não, e ele acha que isso tem algo a ver com o sistema imune.

Sua equipe planejava examinar os anticorpos produzidos por pessoas afetadas por zika para ver se havia neles algo especial ou interessante. O pesquisador conta que tentou, com muito empenho nos pedidos a vários cientistas do Brasil, obter amostras do vírus da zika.

Muitos foram os que se dispuseram a ajudar, diz ele, mas nenhum conseguiu fazer o material chegar às suas mãos. O laboratório da Rockefeller acabou obtendo amostras de vírus brasileiros (mas só por intermédio de um pesquisador americano que havia trabalhado no Brasil) e as comparou com outras do México.

O artigo descrevendo os achados da equipe capitaneada por Nussenzweig –dentre os quais o de que a presença no sangue de anticorpos para o vírus da dengue tipo 1 tem correlação com uma reação forte de neutralização do vírus da zika– "[saiu na edição de 4 de maio da "Cell"]":http://www.cell.com/cell/fulltext/S0092-8674(17)30475-0.

MARCELO LEITE, 59, é repórter especial e colunista da Folha.

FERNANDO VILELA, 43, artista plástico, é autor de "Lampião & Lancelote" (Pequena Zahar), vencedor de dois prêmios Jabuti.


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