Folha de S. Paulo


Leia trecho de "O Simpatizante", vencedor do Pulitzer de ficção

SOBRE O TEXTO Este trecho abre o livro vencedor do Pulitzer 2016 na categoria ficção. A Alfaguara lança neste mês o romance, que narra a história de um agente duplo comunista durante e depois da Guerra do Vietnã.

Reprodução

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Sou um espião, um infiltrado, um agente secreto, um homem de duas caras. Talvez não cause surpresa o fato de ser também um homem de duas cabeças. Não um mutante incompreendido saído de um gibi ou filme de terror, embora alguns tenham me tratado como tal. Apenas sou capaz de ver uma questão pelos dois lados. Às vezes, vanglorio-me de que isso é um talento, e, embora sem dúvida seja um talento de natureza menor, é provavelmente também o único que possuo. Em outros momentos, quando reflito sobre como não posso deixar de observar o mundo dessa maneira, me pergunto se o que tenho merece mesmo ser chamado de talento. Afinal, talento é algo que você usa, não algo que usa você. O talento que você não usa, o talento que domina você –isso é um risco, devo confessar. Mas, no mês em que esta confissão teve início, meu modo de ver o mundo ainda parecia mais uma virtude do que um perigo, que é como alguns perigos surgem da primeira vez.

O mês em questão era abril, o mais cruel dos meses. Foi o mês em que uma guerra que transcorrera por um tempo muito longo perderia as pernas, como acontece com as guerras. Foi um mês que significou tudo para todas as pessoas em nosso pequeno rincão do mundo e nada para a maioria das pessoas no resto do mundo. Foi o mês que presenciou tanto o fim de uma guerra quanto o início da"¦ bom, "paz" não é a palavra correta, não é, meu caro Comandante? Foi o mês em que esperei pelo fim atrás dos muros de um casarão rural onde vivera nos últimos cinco anos, os muros desse casarão cintilando com cacos de vidro marrom e encimados por arame farpado enferrujado. Tinha meu próprio quarto na casa, assim como tenho um quarto em seu acampamento, Comandante. Claro, o termo apropriado para meu quarto é "cela de isolamento", e, em vez de uma empregada que vem fazer a limpeza todo dia, o senhor providenciou para mim um guarda com rosto de bebê que não limpa nada. Mas não estou me queixando. Privacidade, não limpeza, é meu único pré-requisito para escrever esta confissão.

Embora desfrutasse de suficiente privacidade na mansão do General à noite, tinha pouca durante o dia. Fui o único oficial dele a morar em sua casa, o único de seu Estado-Maior que nunca se casou e seu ajudante mais confiável. De manhã, antes de levá-lo pela curta distância até seu escritório, tomávamos o café da manhã juntos, analisando despachos numa ponta da mesa de jantar de teca enquanto sua esposa cuidava do bem disciplinado quarteto de crianças na outra, de dezoito, dezesseis, catorze e doze anos de idade, havendo uma cadeira vaga para a menina que estudava nos Estados Unidos. Talvez nem todo mundo temesse o fim, mas o General, em sua sensatez, sim. Homem magro de excelente postura, era um veterano das campanhas cujas inúmeras medalhas haviam sido, em seu caso, merecidamente ganhas. Embora tivesse apenas nove dedos nas mãos e oito nos pés, tendo perdido três por causa de balas e estilhaços, apenas seus familiares e confidentes sabiam sobre o estado de seu pé esquerdo. Suas ambições raramente haviam sido frustradas, a não ser pelo desejo de obter uma excelente garrafa de Borgonha e bebê-la na companhia de pessoas que nunca cometeriam a estupidez de pôr cubos de gelo no vinho. Era epicurista e cristão, nessa ordem, um homem de fé que acreditava na gastronomia e em Deus; em sua esposa e seus filhos; e nos franceses e americanos. Na sua opinião, eles nos ofereciam tutela muito melhor do que aqueles Svengalis que haviam hipnotizado nossos irmãos do norte e, em parte, do sul: Karl Marx, V. I. Lênin e o grande timoneiro Mao. Não que tivesse lido algum desses sábios! Era tarefa minha, como seu ajudante de ordens e suboficial de inteligência, municiá-lo de colas sobre, digamos, "O Manifesto Comunista" ou "O Pequeno Livro Vermelho", de Mao. Cabia a ele encontrar ocasiões para demonstrar seu conhecimento sobre a forma de pensar do inimigo, sua favorita sendo a pergunta de Lênin, plagiada sempre que a necessidade se apresentava: Senhores, diria, batendo na mesa apropriada com adamantinos nós dos dedos, O que fazer? Dizer ao General que foi Nikolai Tchernichévski quem efetivamente fez a pergunta em seu romance de mesmo título parecia irrelevante. Quantos hoje se lembram de Tchernichévski? Quem contava era Lênin, o homem de ação que se apropriou da pergunta e a tornou sua.

O Simpatizante
Viet Nguyen
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Em seu mais melancólico abril, confrontado com essa pergunta sobre o que fazer, o general que sempre descobria a coisa a ser feita não conseguiu fazê-lo. O homem dotado de fé na mission civilisatrice e no American Way foi finalmente mordido pelo bicho da descrença. Sofrendo de repentina insônia, deu para perambular por seu casarão com a palidez esverdeada de um paciente de malária. Desde que nosso front norte entrara em colapso algumas semanas antes, em março, aparecia na porta do meu escritório ou em meu quarto na casa para me passar um bocadinho de novidades, sempre sombrio. Dá pra acreditar?, ele queria saber, ao que eu dizia uma de duas coisas: Não, senhor! ou Inacreditável! Não podíamos acreditar que a aprazível e pitoresca cidade cafeeira de Ban Me Thuot, meu vilarejo natal, nas Terras Altas, fora saqueada no início de março. Não podíamos acreditar que nosso presidente, Thieu, cujo nome pedia para ser cuspido da boca, inexplicavelmente ordenara que nossas forças de defesa das Terras Altas batessem em retirada. Não podíamos acreditar que Da Nang e Nha Trang haviam caído, ou que nossos soldados haviam atirado em civis pelas costas e lutavam como loucos para fugir em balsas e barcos, a contagem de mortos chegando aos milhares. Na secreta privacidade de meu escritório, eu obedientemente batia fotos desses relatórios, para satisfação de Man, meu contato. Embora fossem também uma satisfação para mim, como sinais da inevitável erosão do regime, eu não podia deixar de me sentir comovido com a provação daquela gente pobre. Talvez não fosse correto, politicamente falando, solidarizar-me com aquelas pessoas, mas minha mãe teria sido uma delas se estivesse viva. Ela era pobre, eu era seu filho pobre, e ninguém pergunta aos pobres se querem a guerra.

VIET THANH NGUYEN, 46, escritor nascido no Vietnã e radicado nos Estados Unidos, venceu o Pulitzer de ficção.

CÁSSIO ARANTES LEITE é tradutor.

DEBORAH PAIVA, 67, é artista plástica.


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