Folha de S. Paulo


Prêmio internacional quer estimular literatura árabe e tradução de obras

RESUMO Prêmio internacional procura estimular a literatura árabe, num mercado em que tiragens de mais de 5.000 cópias ainda são consideradas milagres. Organização remunera os finalistas e garante a tradução da obra vencedora para o inglês, no intuito de superar a barreira das editoras acadêmicas ou de nicho.

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O cânone da literatura árabe ganhou um volume na terça-feira (25) com a premiação do saudita Mohammed Hasan Alwan. Seu livro "Uma Pequena Morte", biografia romanceada de um pensador medieval, recebeu o principal troféu para ficção escrita nessa língua. O evento era esperado por editoras dispostas a pinçar novos títulos em um mercado ainda magro.

O júri do Prêmio Internacional de Ficção Árabe escolheu entre seis finalistas e sua decisão não serve apenas de aval. O atrativo da distinção é a garantia de tradução da obra vencedora ao inglês, idioma do qual saltará a outras praças, incluindo a brasileira.

Além disso, o prêmio conta com a chancela oficial do Booker Prize, tradicional troféu literário anglófono e um dos mais importantes do mundo, atrás do Nobel.

"Azazel", laureado em 2009, foi traduzido ao português por Safa Jubran, professora da USP, e publicado em 2015 pela Record. O incentivo à tradução tem como objetivo romper o que o pensador palestino Edward Said (1935-2003) descreveu como literatura embargada, publicada somente pelas editoras acadêmicas e de nicho.

Um dos curadores do prêmio, Zaki Nusseibeh, conta que ele foi instituído em 2007 em resposta ao que chama de números assustadores. Um relatório da Organização das Nações Unidas estimara que a produção árabe não excedia 1,1% do total mundial, apesar de os árabes serem 5% da população.

Uma década e meia depois daquele levantamento, tiragens de mais de 5.000 cópias ainda são celebradas como milagres nesse mercado, em que títulos religiosos correspondem a não menos que 17% dos lançamentos.

"Um autor tem sorte se vender [algumas] centenas de livros", afirma Nusseibeh, também assessor do governo dos Emirados Árabes para políticas culturais.

Nesse cenário, valer-se da escrita como fonte exclusiva de renda é temerário. Basta considerar o caso de Alaa al-Aswany, autor de "Edifício Yacoubian", best-seller que em 2006 foi transformado no filme mais caro da história do cinema do Egito. Até hoje ele trabalha como dentista.

Ao longo desses dez anos, o prêmio de ficção árabe, que é financiado pela Autoridade de Turismo e Cultura de Abu Dhabi, produziu alguns dos resultados esperados.

A cada edição, os volumes finalistas são dissecados em clubes de leitura de Beirute (Líbano) e Amã (Jordânia). Ao serem incluídos na derradeira fase da disputa, esses títulos vendem em média mil novos exemplares.

"Nossa seleção é recebida como uma lista de livros que valem a pena. Bibliotecas fazem estoque", afirma Nusseibeh. "Antes, só sabíamos o que era publicado no Cairo, um dos centros editoriais de língua árabe. Hoje, também conhecemos a produção de outros países. Existe uma consciência pan-árabe."

Neste ano, a relação de finalistas incluía autores da Líbia, do Iraque, da Arábia Saudita, do Kuait e do Egito.

AFP
Saudi Arabian writer Mohammed Hasan Alwan poses for a photo after winning the 2017 International Prize for Arabic Fiction in Abu Dhabi on April 25, 2017. / AFP PHOTO / STRINGER ORG XMIT: 1751
Mohammed Hasan Alwan, ganhador do Prêmio Internacional de Ficção Árabe

CELEBRIDADE

A premiação também serve para arrancar talentos do anonimato, já que estreantes podem concorrer com veteranos das letras. Tanto assim que o consagrado libanês Elias Khoury, com livros já traduzidos para o português ("Porta do Sol" e "Yalo"), foi derrotado em 2013 pelo novato Saud Alsanousi, do Kuait. Em 2017, Khoury voltou a concorrer –novamente sem sucesso.

"Já houve polêmica em torno do fato de grandes escritores não terem ganhado o prêmio", diz o cocurador. "Mas não estamos agraciando autores pelo conjunto de sua obra, e sim os melhores romances de um período específico."

Também é específico o formato: aceita-se somente prosa. "A literatura árabe tradicional foi escrita em poesia por séculos. O romance, no entanto, começou a se impor no fim do século 19 e hoje funciona como o espelho real das sociedades árabes", afirma Nusseibeh.

A Academia Sueca chancelou essa mudança há quase 30 anos, ao entregar ao egípcio Naguib Mahfouz (1911-2006; "Noites das Mil e Uma Noites") o Nobel de Literatura de 1988.

Em 2017, as seis obras que chegaram à reta final do Prêmio Internacional de Ficção Árabe compõem um mosaico heterogêneo.

O vencedor, "Uma Pequena Morte", reconta a vida do pensador sufista Ibn Arabi (séculos 12 e 13). "Al-Sabiliat", do kuaitiano Ismail Fahd Ismail, narra a guerra entre o Irã e o Iraque (1980-88) a partir da perspectiva de uma mulher.

Por sua vez, "Canetas Escravas", da líbia Najwa Binshatwan, trata da escravidão em seu país, no norte da África, enquanto "Crianças do Gueto", do já citado Elias Khoury, debruça-se sobre o drama palestino de 1948, quando da declaração de independência do Estado de Israel. No quinto concorrente, "O Assassinato do Vendedor de Livros", o iraquiano Saad Mohammed Rahim descreve a riqueza cultural de seu país antes da invasão americana de 2003.

ROMANCE GAY

A obra cuja presença na fase decisiva do certame mais causou surpresa, porém, foi "No Quarto da Aranha", do egípcio Mohammed Abd al-Nabi, romance sobre a detenção e tortura de um homossexual no Cairo.

O resumo disponível no material de divulgação do troféu diz apenas que o livro "desafia tabus e dá voz a um grupo marginalizado", sem indicar com clareza de que grupo se trata. Gays são perseguidos no Egito.

Nabi diz que lhe ocorreu abordar o tema após a revolução de 2011, quando protestos derrubaram o regime de Hosni Mubarak.

Depois que milhões foram às ruas, "ficou claro que nós não nos conhecíamos o suficiente e que nos relacionávamos apenas entre semelhantes", afirma. "Quis escrever uma história de amor incomum de uma maneira que ainda não tinha sido feita na narrativa árabe."

O autor se inspirou em conversas com ativistas e em relatórios de organizações de defesa dos direitos humanos.

Um dos episódios reais que serviram de base para o enredo foi o da detenção de 52 homens egípcios em uma boate gay flutuante, no rio Nilo, em 2001, sob as acusações de deboche à religião e comportamento obsceno.

Eles passaram por exames físicos para "provar sua homossexualidade" e foram mantidos por 22 horas diárias em celas sem leitos.

Há personagens gays em outros romances árabes, mas a construção do personagem em "No Quarto da Aranha" não recorre aos estereótipos utilizados, por exemplo, no best-seller "Edifício Yacoubian".

A obra de Nabi não levou o troféu, mas já existe interesse de editores estrangeiros em traduzi-la para o inglês. Otimista em relação ao mercado, ele diz que há hoje uma produção literária incomum.

Segundo o autor, porém, isso não se traduz necessariamente em ganhos qualitativos: "Grande parte dessa oferta é dedicada ao entretenimento. É escrita feita às pressas e esquecida em seguida".

Azazel
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Os livros que concorreram ao prêmio foram publicados entre julho de 2015 e julho de 2016. Houve 186 inscrições de 19 países. Os seis finalistas receberam US$ 10 mil (R$ 31,5 mil) cada um, e o vencedor ganhou US$ 50 mil (R$ 157,4 mil) adicionais, além da garantia de publicação do livro em inglês.

O laureado no ano passado foi o palestino Rabai al-Madhoun, autor de "Destinos: Concerto do Holocausto".

DIOGO BERCITO, 29, é correspondente da Folha em Madri; mestre em estudos árabes, assina os blogs Orientalíssimo e Mundialíssimo no site do jornal


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