Folha de S. Paulo


Música eletrônica se reinventa com senso autoral afiado

RESUMO Texto mostra transformações por que passa a música eletrônica hoje. Tendências vão desde a presença ostensiva, nas pistas, de produtores com forte assinatura criativa até o apagamento das fronteiras entre os gêneros, passando pela construção de narrativas com começo, meio e fim para as performances ao vivo.

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"É possível basear uma cultura em sensações em vez de verdades, em fascinação no lugar de significado?"

Essa pergunta foi feita em 1998 pelo crítico inglês Simon Reynolds na introdução de "Energy Flash" (Picador), livro fundamental para conceitualizar a narrativa dos primeiros anos da cultura de raves e da música eletrônica de pista.

O autor gasta quase 500 páginas para defender o "sim" e contar a história dos diferentes gêneros e dos protagonistas dessa que foi a última grande revolução musical, não por acaso a última a se firmar antes da popularização da internet.

À pergunta original cabe acrescentar, mais de 30 anos depois da invenção da house music em Chicago e do techno em Detroit, outras inquietações.

Como evolui um gênero tão atrelado ao desenvolvimento tecnológico em uma época de inovação acelerada? O que está acontecendo com a eletrônica de pista hoje e que caminhos ela aponta?

Antes de entrar nessas questões, é preciso olhar para a produção musical atual e fazer alguns recortes. O hardware e o software usados para produzir música eletrônica se tornaram o padrão de produção de todo tipo de música, do sertanejo que está no topo das paradas brasileiras ao pop que domina toda parada em qualquer canto do mundo.

O acesso barato a esses equipamentos transformou a música de maneira geral, independentemente dos estilos, com elementos eletrônicos sendo incorporados naturalmente ao rock, ao jazz, ao rap, à MPB.

Mas é na música de pista que eles brilham. Garotos de 15 anos conseguem produzir música no quarto com o mesmo equipamento que produtores de 40. Esse sangue novo faz com que a produção eletrônica viva hoje um momento muito fértil em termos criativos.

Chico Dub, curador do festival carioca Novas Frequências, aponta algumas tendências atuais da música de pista. "A primeira é que o momento não é bom para os clubes. As pessoas estão buscando lugares alternativos, com mais liberdade, menos normas e regras. As festas transcendem o aspecto puramente musical, são experiências sensoriais."

Outra, segundo Dub, é a explosão do veterano techno, surgido nos anos 1980:

"Esse techno mais analógico, feito com vários hardwares diferentes, super 'dark', tem crescido muito. Em contrapartida, vemos uma tendência entre os DJs de [privilegiar] um som solar, baleárico [relativo às ilhas Baleares, das quais faz parte Ibiza, polo irradiador da eletrônica eclética dos anos 1980 e 1990], onde cabe de tudo um pouco".

Ariel Martini - fev.2017/Divulgação
O chileno Nicolas Jaar se apresenta no festival Dekmantel, em São Paulo
O chileno Nicolas Jaar se apresenta no festival Dekmantel, em São Paulo

COM ASSINATURA

O produtor Akin Deckard, que organiza a festa Metanol, faz coro e vai além, destacando o avanço da música autoral.

"O que tem mudado é a percepção dos artistas sobre o que pode ser a música para dançar. Embora a gente tenha tido há uns 15 anos uma cena em que o 'live set' [apresentação ao vivo mais autoral, em que intervenções sobre música pré-gravada vão além de simples alterações de rotação e frequência] era forte, houve um hiato que é preenchido agora por essa nova geração", diz ele.

As festas ODD, Capslock e Mamba Negra, todas originalmente realizadas em São Paulo, são alguns dos eventos que promovem essa fusão entre DJ sets e apresentações de produtores.

Um dos produtores de destaque nessa cena é L_cio. Laércio Schwantes, que leva seu projeto Teto Preto ao festival DGTL, em São Paulo, no próximo fim de semana, aposta na força da performance ao vivo –faceta que era um tabu no início da cultura eletrônica.

"Acredito muito na dimensão artística dessas apresentações 'live'. O Brasil hoje está produzindo um som autoral de alta qualidade. As pessoas têm mania de falar que o que se faz é uma cópia da cena europeia, mas as coisas mudaram. Antes, todo mundo queria tocar lá. Agora, os europeus é que querem vir para cá", afirma L_cio, que desenvolve trabalhos ancorados na música brasileira e costuma subir ao palco com um aparato que inclui sintetizadores, controladoras e drum machines.

Para Akin Deckard, a inspiração e a liberdade criativa hoje pautam mais a produção de música de pista do que a mira em formatos já estabelecidos.

"Isso cria uma cena mais independente e autônoma. É possível ver produtores transitando por estilos diferentes, indo do techno ao experimental, arriscando em outros BPMs [batidas por minuto]. É interessante ver nomes do techno se envolvendo com composição eletrônica tradicional ou incorporando vocais e instrumentos acústicos, formando quase uma banda para o seu 'live set'", afirma.

AO VIVO

Curador do festival Eletronika, Marcos Boffa também vê o "ao vivo" como protagonista da música de pista atual. "A inovação está no 'live' há um bom tempo. O DJ é superimportante, mas é um tocador de música dos outros. Para fazer com que a estética se mova, tem de ser o produtor tocando a sua música", argumenta.

Segundo Boffa, ruma-se para o apagamento das fronteiras entre os gêneros que compõem a eletrônica. Exemplos da impossibilidade de classificação estanque são as produções de Arca e de Elysia Crampton, latinos cujas obras refletem essas origens de forma muito particular e sensível.

Cresce o número de artistas que, a exemplo de Arca, usam a linguagem da dance music em suas obras, mas quase abandonam a pista, ou seja, substituem a ideia de música rítmica, feita antes de tudo para dançar, por composições etéreas, climáticas, menos estruturadas. Estão mais próximos de coletivos que rompem com os dogmas da eletrônica, inclusive com o maior deles, a batida 4x4, ou "four to the floor".

"Coletivos como o Janus Berlin, na Alemanha, o Staycore, na Suécia, e o N.A.A.F.I, no México, estão fazendo um som que pode ser tanto experimental quanto pop. Com eles vem um ativismo de gênero, uma cultura 'queer' muito forte", diz Chico Dub.

Essa música mais exploratória tem crescido tanto que ganhou uma pista especial no mês passado no icônico clube Berghain, de Berlim. Batizado de Säule [coluna, em alemão], o espaço foi pensado para abrigar esse som mais amorfo.

"Acabou a obrigatoriedade da batida ou da música feita só com sintetizadores, sequenciadores e drum machines", diz o produtor Alex Kidd, o _Kidd, um dos organizadores da S*lar, uma festa em São Paulo feita para ser o "after" do "after party", nas tardes de domingo.

"O que eu vi com a S*lar é que hoje não tem muita barreira de gênero. Você pode fazer música com bateria eletrônica e guitarra, com computador e violino. Não precisa da batida e, principalmente, não tem a obrigação do carão", completa _Kidd.

CONTAR HISTÓRIAS

O importante no revival do techno, no som mais baleárico dos DJs e na performance ao vivo do produtor é contar uma história. "Um exemplo é o Nicolas Jaar", diz Boffa. "Ele não faz um set de música para a pista, ele quase cria uma trilha sonora para a pista, com começo, meio e fim. Tem um fio narrativo."

Ás da narração e adepto convicto do estilo baleárico, Augusto Olivani, ou DJ Trepanado, diz que viu o interesse por esse tipo de discotecagem mais livre crescer desde que ele começou a organizar a festa Selvagem, há seis anos.

"Tem um público mais jovem, multicultural, diverso e cosmopolita começando a sair e a tocar. Jovens que já foram educados em uma época em que o algoritmo vive apresentando coisas novas. Então, eles preferem ir a uma festa ou a um festival que tenha um 'live' de techno e depois um DJ que explore músicas dançantes de diferentes formatos. Uma coisa não precisa canibalizar a outra, tem espaço para tudo", analisa Olivani.

Na Selvagem, é possível ouvir desde house italiana de hoje ou disco music de Trinidad & Tobago até um hit antigo de house mutante ou um remix de boogie.

Nesse cardápio sortido de batidas e latitudes, uma bússola é o fetiche de DJs por uma certa "involução" tecnológica.

"Adoro tocar com vinil. Mas o que dá mais liberdade e está em todos os clubes são os CDJs [aparelhos de CD preparados para discotecagem]. Com eles e mixers novos, que permitem mixar até quatro faixas, dá para você fazer o que quiser", diz Olivani.

Para quem é DJ de verdade, o que importa é a música. E ela voltou ao pico de criatividade.

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GUILHERME WERNECK, 44, é publisher da revista "Bravo!"


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