Folha de S. Paulo


Filme mostra influência de bruxo sobre Perón no exílio

RESUMO Blas Martínez, filho do escritor e jornalista Tomás Eloy Martínez, faz documentário a partir das quatro horas de entrevista que o general Perón concedeu ao pai do cineasta em 1970, em Madri. Filme, que será exibido no festival É Tudo Verdade, volta ao passado para buscar respostas a dilemas atuais do peronismo.

Arquivo pessoal
Tomas Eloy Martinez (a dir.) e Peron (a esq.) para Ilustrissima
O general Perón (à esq.) com o escritor e jornalista Tomás Eloy Martínez

"Os peronistas somos como gatos. Quando parece que brigamos, é porque estamos nos reproduzindo", teria dito o general Juan Domingo Perón (1895-1974) para definir momentos como o atual.

Pouco mais de um ano depois da vitória do direitista Mauricio Macri (da aliança Cambiemos) contra o peronista Daniel Scioli, o peronismo está dividido. Suas principais lideranças discordam quanto ao modo de enfrentar o governo na eleição legislativa de outubro.

Uma parte do peronismo, mais à direita, aliou-se ao presidente Macri. Outra, à esquerda, tem como líder a ex-mandatária Cristina Kirchner, que deve se apresentar como candidata ao Senado. Enquanto isso, ainda outra parcela se desmembra para apoiar uma espécie de terceira via da vertente, centrista e representada pela figura de Sergio Massa, terceiro colocado na última corrida presidencial.

Vale lembrar que o peronismo não é um partido. Embora esteja representado por um, o Justicialista, espalha-se por várias agremiações. Ainda que fragmentado, tem maioria no Congresso e controla boa parte dos governos das províncias.

Assim como hoje, o ano de 1970 era crítico para o movimento. O general Perón vivia na Espanha, onde se exilara após um golpe militar ter interrompido sua sequência de dois mandatos presidenciais (1946-1955). Na Argentina, enfrentavam-se peronistas de esquerda, da guerrilha Montoneros, e de direita, ligados ao sindicalismo.

Perón conduzia o movimento à distância. Recebia líderes políticos, enviava diretrizes a seus comandados do outro lado do Atlântico e acertava detalhes de um possível retorno, que só ocorreria em 1973.

Foi durante sua estadia em Madri que se encontrou com o escritor e jornalista argentino Tomás Eloy Martínez (1934-2010), então correspondente em Paris do semanário "Panorama". Enviado à capital espanhola para entrevistar o general, Tomás Eloy conduziu conversas por quatro tardes, das quais resultaram quatro horas de gravação.

O conteúdo embasou não só a reportagem que fora fazer mas também dois de seus livros mais importantes. Primeiro veio "A Novela de Perón" (1985), em que Tomás Eloy romantiza a biografia do general. Depois surgiu o mais famoso, "Santa Evita" (1995), ficção em que narra a saga do cadáver de Evita desde que foi roubado, em 1955, até ser reencontrado e entregue ao viúvo, na Europa.

NO LIMBO

Essas gravações ficaram esquecidas por mais de 30 anos. Em 2009, o cineasta Blas Martínez, 45, pediu as fitas ao pai doente –Tomás Eloy recebeu diagnóstico de câncer seis anos antes de morrer.

"Ele a princípio se recusou a entregá-las. Dizia que já não havia mais nada a tirar dali. Para meu pai, as entrevistas só tinham valor como matéria-prima a partir da qual construiu suas obras. Mas eu achava que, além da importância histórica, elas traziam material para discutir as transformações do peronismo na época em que vivíamos", conta Blas Martínez à Folha.

O cineasta –que, diferentemente do pai, considera-se peronista– afirma que queria encontrar nas fitas "o DNA do peronismo, algo que identificasse aquele passado com a reorganização do movimento que ocorria na atualidade".

Há oito anos, vivia-se a fase inicial dos governos de Cristina Kirchner (2007-2015). A presidente conhecia sua primeira grave crise interna, na qual enfrentou ruralistas e endureceu medidas contra a mídia. Sua popularidade estava baixa e só melhoraria após a morte do marido e antecessor, Néstor Kirchner (1950-2010).

"Em 2009, o kirchnerismo era algo novo dentro de um peronismo em transformação. Assim como hoje, o peronismo continua sendo um movimento político amplo e heterogêneo, tentando se reorganizar e dar resposta ao que está aí." Quando diz essa frase, Blas movimenta a cabeça em direção à Casa Rosada.

Sua pesquisa resultou primeiro numa série de televisão, "La Argentina según Perón" (2012, disponível no site do canal Encuentro: www.encuentro.gob.ar).

Agora, surge uma leitura pessoal daquele encontro, com o documentário "Perón, Meu Pai e Eu", que será exibido no festival É Tudo Verdade (nos dias 23 e 25, no Rio de Janeiro, e 27 e 28, em São Paulo).

O filme parte da premissa de que o peronismo foi central na vida dos Martínez: rendeu a entrevista com o general e, mais tarde, levou Tomás Eloy a exilar-se no exterior.

"Meu pai era um 'gorila' [referência pejorativa de peronistas aos não peronistas]. Achava que Perón era fascista", diz Blas. "Por causa disso, tínhamos discussões quando eu era adolescente."

BRUXARIA

Tomás Eloy foi levado ao exílio não por confrontação ideológica, mas devido a um detalhe naquelas tardes de 1970, em Madri. Em certo momento do encontro, o escritor chamou de "servente" o bruxo López Rega (1916-1989), espécie de assessor espiritual e político de Perón e de sua terceira mulher e sucessora, María Estela Martínez de Perón, a Isabelita.

"Em 1975, com Perón já morto e Isabelita presidente, López Rega se tornou um dos homens mais poderosos do país. Uma noite –eu tinha dois anos–, oficiais da repressão vieram ameaçar meu pai. De arma em punho, deram a ele 24 horas para deixar o país", relembra Blas.

Tomás Eloy exilou-se em Caracas, na Europa e nos EUA. Só retornou à Argentina depois da ditadura militar (1976-1983).

"Eu queria dar ênfase à figura de López Rega no documentário, porque é um personagem nefasto e difícil de ser aceito por muitos peronistas. O fato de alguém tão raso, ligado ao esoterismo, ter ganhado tanta confiança e poder de decisão dentro da cúpula peronista até hoje é misterioso", afirma o cineasta.

Quando vivia na Espanha com Perón e Isabelita, o bruxo López Rega promovia rituais com o corpo de Eva Perón –que ocupava um dos quartos da casa em Madri– para transmitir a energia de sua alma à nova mulher do general.

Ao escutar as fitas, Blas se deu conta de que López Rega metia-se na conversa o tempo todo, emendando frases de Perón ou interrompendo-o com comentários fantasmagóricos.

MISTÉRIO

Num trecho, Tomás Eloy pergunta se Perón havia ido ao funeral de Bartolomé Mitre (1821-1906), que presidiu a Argentina de 1862 a 1868. O general responde que sim e dá detalhes sobre a ocasião. López Rega corrige-o. O jornalista, assustado, pergunta: "Como você sabe isso?". O enterro de Mitre ocorrera dez anos antes do nascimento de López Rega. "Eu estava lá", responde o bruxo.

No governo de Isabelita, López Rega se encarregou de comandar as ações da Triple A, esquadrão da morte que atuava na repressão.

"Sua existência na história do peronismo é incômoda. Ele passou por cima de militantes mais inteligentes e sólidos. Minha teoria é que soube aparecer na vida de Perón justo quando este não sabia em quem confiar, pois estava prestes a voltar a uma Argentina em que seus apoiadores se digladiavam entre si", diz Blas.

Tanto na série de TV como no filme, há declarações de Perón sobre as particularidades da política argentina que se aplicam aos dias de hoje e ajudam os não argentinos a entender o que é o peronismo.

Por exemplo, o general explica "a quem queira entrar nessa merda que é a política" algo que lhe parece essencial: "Sempre haverá 10% de idealistas e 90% de materialistas. Os idealistas são como os cães: acreditam, voltam a você mesmo depois que você os trata mal. Já os materialistas são como gatos: sempre encontrarão uma forma de escapar de seus chutes". Para Perón, governar era saber guiar-se entre essas duas forças.

Ele também conta como fez para que o peronismo fosse tão duradouro, ainda que mutante. "Todo movimento político precisa de articulação. Se for uma estrutura rígida, se rompe", diz, na gravação.

ANTICORPOS

Depois complementa com sua teoria dos anticorpos: "É preciso comandar uma força política para que se desenvolva como se fosse um organismo. Assim ela expulsará os que se rebelam, os traidores. Eu não tiro ninguém, não preciso fazer nada, espero o organismo reagir. O peronismo criou autodefesas tremendas".

As gravações ainda revelam que Perón considerava Evita "uma criação sua". Achava que ela tinha "sensibilidade para o social", mas precisava de estímulo para começar a atuar politicamente.

Quando mostrou essa gravação para as atuais integrantes do Movimento Evita, Blas recebeu resposta negativa. As militantes de hoje classificam de machista a visão de Perón e afirmam que ele não se teria transformado em mito sem a mulher, morta aos 32 anos, vítima de câncer.

Na conversa com Tomás Eloy, o general analisa sua deposição, em 1955: "[Só caí porque não quis] entregar armas à população. Se tivesse feito isso, nós teríamos nos defendido do golpe. Mas, na sequência, seríamos massacrados, porque havia forças de fora querendo nos arrasar", diz.

Hoje, o filho do "gorila" Tomás Eloy Martínez diz que o peronismo segue vivo como nunca, mas passa por um momento de redefinição.

"Ser peronista hoje é acreditar firmemente que o povo tem capacidade real de decidir e de levar adiante um processo, que pode aglutinar a direita e a esquerda. Ser nacionalista, não nacionalista fechado, mas alguém que se identifique com outros países da região. É acreditar que a América Latina é a pátria grande", resume Blas.

O cineasta critica o que considera erros recentes do movimento, como o isolamento promovido pelo kirchnerismo. "É um momento de autocrítica, em que é preciso tirar os egos do caminho e eleger alguém que tenha surgido desses anos de renovação da militância."

SYLVIA COLOMBO, 45, é correspondente da Folha em Buenos Aires


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