Folha de S. Paulo


Os 50 anos da morte de Luz del Fuego, a vedete vanguardista

RESUMO Luz del Fuego era o nome artístico da dançarina capixaba Dora Vivacqua (1917-67), que causou espécie na boêmia carioca da década de 50 com performances sensuais e relacionamentos com políticos. Partidária do naturismo, vista como precursora do feminismo e homenageada em canção por Rita Lee, ela faria cem anos em 2017.

"Luz del Fuego aplaudida por 293.975 pessoas", anunciava o "Jornal dos Sports", em 15 de janeiro de 1952.

Àquela altura, o espetáculo "A Fruta de Eva" estava em cartaz havia apenas um mês e meio no Rio, com sessões de terça a sexta (uma por dia), além de três aos sábados e outras três aos domingos.

O "Jornal dos Sports" era só elogios. "Há números que fazem o público vibrar de tal forma que as artistas são forçadas a bisá-los", dizia o diário carioca, que tinha seção dedicada ao showbiz, com ênfase no teatro de revista e em suas vedetes.

Luz era uma delas. Na casa dos 30 anos, desfrutava o auge da popularidade naquela primeira metade da década de 1950. Não era tão exuberante quanto a sua colega de palcos Virginia Lane (1920-2014), mas sabia como provocar o público com coreografias em que aparecia nua, ou quase, com cobras se enroscando em seu corpo.

Numa passagem pelo viaduto do Chá, em São Paulo, a dançarina de 1,50 m foi cercada por uma multidão. Para promover um espetáculo, estava pelada, com cabelos e pelos tingidos de verde, como contam as autoras Cristina Agostinho, Branca de Paula e Maria do Carmo Brandão na biografia "Luz del Fuego - A Bailarina do Povo" (Best Seller; esgotado).

Mas a casa da vedete era o Rio. Ela se tornou uma das estrelas do histórico teatro Recreio, no centro da cidade. "Havia sempre uma multidão quando ela estacionava uma caminhonete amarela diante do teatro", diz Luiz Carlos Issa, jornalista que fez a última entrevista com Luz, publicada na revista "O Cruzeiro".

Walter Pinto, o Midas do teatro de revista da época, sabia bem como organizar seu elenco de musas. Lane, por exemplo, encarnava as personagens maliciosas, e Mara Rúbia (1918-91), as inocentes.

A Luz cabia instigar o público com uma sensualidade temperada por exotismo. Mas não só. Era também impetuosa fora dos tablados, alardeando opiniões contundentes para a época. Nos anos 50, defendia o divórcio, duas décadas antes de ele ser instituído no país.

Walter Pinto deu a ela aparato para que obtivesse mais êxito de público, mas Luz não era uma persona artística lapidada pelo produtor. Seu estilo abusado, em que argúcia e ousadia conviviam com vulgaridade, havia surgido décadas antes.

JIBOIAS

Dora Vivacqua nasceu numa segunda-feira de Carnaval, em Cachoeiro de Itapemirim (ES). Veio ao mundo em 21 de fevereiro de 1917, há cem anos. Antes dela, o casal Antônio e Etelvina Vivacqua havia tido 14 filhos.

Influente no Espírito Santo, a família incluía políticos, empresários e intelectuais. Em comum entre eles, a fidelidade à Igreja Católica.

Logo nos primeiros anos, Dora já revelava modos atípicos. Divertia-se com animais incomuns, o que ficou evidente após a visita a um serpentário em Belo Horizonte.

Na adolescência, seu desapreço às convenções sociais começou a incomodar a família. Criticava o recato das irmãs e se distraía atiçando os meninos, mas sem se envolver com eles.

No início dos anos 30, ela morava com Angélica, sua irmã, e Carlos, o marido dela, na capital mineira. Ele assediava a cunhada dia sim, dia não, até que Angélica flagrou Carlos bolinando Dora. A culpa recaiu sobre ela; a saída encontrada pela família foi interná-la num hospital psiquiátrico de Belo Horizonte, onde ficou por dois meses.

"Ela era contestadora e sofreu uma barbaridade com a família tradicional", diz a militante feminista Schuma Schumaher, autora, com Erico Teixeira Vital Brazil, do "Dicionário Mulheres do Brasil" (Zahar).

Aos 21 anos, Dora abandonou a família pra viver no Rio. Esperava atingir a fama, como Hedy Lammarr (1914-2000), austríaca radicada nos EUA que ficou famosa após aparecer nua no filme "Êxtase" (1933).

Iniciou aulas de dança e passou a trabalhar em circo, como narrado em sua biografia. Ela sabia, porém, que não era especialmente talentosa como bailarina. A inspiração para se destacar veio enquanto folheava um livro numa loja do largo da Carioca. Nele, viu imagens de sacerdotisas da Macedônia envoltas em cobras.

Os répteis se converteram em uma obsessão para Dora, que comprou jiboias da Amazônia e ensaiou com elas por quase um ano.

Sua primeira apresentação com as cobras deixou perplexo o público, que a aplaudiu como nunca. Começava ali a transição do universo do circo para o do teatro de revista de Walter Pinto, que daria a Dora projeção nacional. Era o momento de adotar um nome artístico forte. Escolheu Luz del Fuego, marca de batom argentino que acabara de chegar ao Brasil.

Em 1947, a vedete lançou "Trágico Black-Out", um romance de viés autobiográfico, com críticas ao casamento e descrições de fantasias sexuais. "Num mundo que está progredindo dia a dia, os preconceitos continuam amarrados a um poste", escreveu na introdução.

A publicação gerou novo constrangimento a sua família. Furioso, o senador Attilio Vivacqua, irmão de Luz, mandou queimar os livros. Restaram poucas cópias.

NATURISMO

No segundo romance, "A Verdade Nua", de 1949, sua defesa do naturismo aparece com nitidez. Para Luz, os pais deveriam afastar os filhos do "pudor, a mais ignóbil das virtudes".

Naquele mesmo ano, ela lançou o Partido Naturalista Brasileiro (PNB), que teria a defesa do divórcio, da mulher e do naturismo como principais bandeiras. Luz pretendia se candidatar a deputada federal, mas a legenda não obteve registro.

A vedete não se deu por vencida. Meses depois, seu interesse crescente pelo naturismo a levou até o ministro da Marinha, Renato Guilhobel, para pedir a concessão de uma ilha a fim de criar um clube de nudismo.

(As entrevistas da dançarina reverberavam entre os cariocas, o que lhe garantia certa influência. Além disso, colecionava casos amorosos com políticos. Clemente Mariani, ministro da Educação do governo de Eurico Gaspar Dutra, foi um dos amantes de Luz del Fuego, que jamais se casou.)

Pois a vedete foi tão enfática que o ministro da Marinha lhe permitiu ocupar a pequena ilha Tapuama de Dentro, a 15 minutos de barco da ilha de Paquetá, na baía de Guanabara. Ela passou a morar no local –só ia ao Rio para apresentações esporádicas. Rebatizado por Luz como Ilha do Sol, o perímetro sediou o primeiro clube naturista da América Latina.

A colônia viveu seu apogeu na segunda metade da década de 1950. Além de reunir mais de 200 sócios, tornou-se uma atração para quem não se satisfazia com o roteiro turístico carioca tradicional. O ator norte-americano Steve McQueen (1930-80), de "Sete Homens e Um Destino" (1960), foi um dos curiosos que passaram pela ilha.

Luiz Carlos Issa, hoje com 80 anos e morador de Paquetá, lembra-se de um concorrido baile de Carnaval na colônia, embalado por músicos que vestiam apenas gravatas-borboletas. Eventos como esse, além das exibições eventuais no Rio, visavam a manutenção do clube. Mas os esforços foram insuficientes, o que obrigou Luz a fechá-lo no início dos anos 60. Ela passou a viver na ilha apenas com o caseiro Edgar.

Com a redução do movimento, o local se tornou mais vulnerável. A vedete chegou a ameaçar com uma arma os irmãos pescadores Alfredo e Mozart Teixeira Dias porque desconfiava que estivessem usando a ilha pra esconder material de contrabando. Motivados pelo desejo de vingança e convictos de que Luz guardava muito dinheiro na ilha, como registrou a revista "O Cruzeiro", eles mataram a vedete a golpes de remo.

Era a tarde de 19 de julho de 1967, há meio século.

Oito anos depois, Rita Lee deu o nome de "Luz del Fuego" a uma das faixas do disco "Fruto Proibido". "Eu hoje represento o segredo/ Enrolado no papel/ Como Luz del Fuego/ Não tinha medo/ Ela também foi pro céu, cedo!", diz a letra.

Em 1982, entrou em cartaz o filme que também levava no título o nome da vedete, com Lucélia Santos no papel principal.

50 ANOS DEPOIS

Hoje, na Ilha do Sol, resta pouco além de escombros das construções de alvenaria de seis décadas atrás. A vegetação é escassa, já que pelo menos dois terços da ilha são formados por pedras. Plantas mais resistentes, como cactos, crescem nas fendas entre as rochas.

No dia em que a reportagem esteve lá, os únicos moradores eram urubus e lagartos. Nas paredes que resistem ao tempo e ao vandalismo, há inscrições de cunho feminista, em tinta vermelha. Uma delas diz "seu corpo, suas regras". Não são resquícios dos tempos do clube nudista, e sim uma marca recente, de autoria desconhecida.

"Luz del Fuego disse que ainda seria conhecida 50 anos depois de morrer. É, de fato, o que acontece", afirma Lola Aronovich, professora de literatura da Universidade Federal do Ceará (UFC) e blogueira feminista.

Para ela, a vedete pode ser considerada uma precursora do feminismo brasileiro, ao lado de nomes como Pagu (1910-62) e Leila Diniz (1945-72).

A Ilha do Sol está abandonada. A memória de Luz del Fuego, não.

NAIEF HADDAD, 41, é repórter associado da Folha.


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