Folha de S. Paulo


Arquivo aberto: O concerto perdido por uma boa ideia

Martha Argerich, a notável pianista argentina, não dá concertos em Buenos Aires com a frequência que desejaríamos.

Cada uma de suas apresentações atrai centenas de fanáticos por seu virtuosismo, o que torna muito difícil conseguir ingressos para ouvi-la ao vivo. Algumas vezes, no entanto, os desejos se realizam.

Em julho de 2015, conseguimos entradas para um desses raros concertos para piano e orquestra. A sala do Centro Cultural Néstor Kirchner estava lotada. A presença de inúmeros músicos, artistas plásticos e gestores culturais fazia do evento um local para a discussão de novos projetos artísticos.

Arquivo pessoal
Diana B. Wechsler e Aníbal Jozami, em 2015
Diana B. Wechsler e Aníbal Jozami, em 2015

No intervalo, como é habitual, encontramos conhecidos. Eu estava com meu marido, Mae, e com os sociólogo Aníbal Jozami e sua mulher. Quando voltávamos do intervalo, Aníbal comentou: "Vamos fazer uma bienal de arte totalmente inovadora para a América do Sul".

"Como? De que falamos?", perguntei. "Depois conversamos", ele respondeu. Voltei ao concerto com essa breve troca de palavras na cabeça; ativaram-se então inúmeras reflexões sobre o sistema de arte, o formato bienal de arte e todas as oportunidades em que cada um de nós havia imaginado algo novo.

Para mim, o resto da apresentação ocorreu em meio a um silencioso burburinho mental. De repente, o tão desejado concerto havia acabado por se transformar em algo próximo de uma música de fundo.

O jantar foi uma espécie de redemoinho de ideias no qual se colocaram em jogo essas distintas vozes que me impediram de apreciar devidamente o concerto. Rapidamente tínhamos configurado um formato alternativo para uma bienal de arte, uma que fosse localizada "bien al sur" (bem ao sul). Sim, ao sul, não apenas como marca de lugar mas também como uma posição mental, buscando deslocar os orçamentos e fórmulas habituais para, a partir das experiências em uso, dar lugar a outras que favorecessem novos modos de produção, bem como outras maneiras de circulação e interpelação do público.

Assim nasceu Bienalsur, a Bienal Internacional de Arte Contemporânea da América do Sul, um espaço plural, polifônico, multipolar e horizontal no qual se trabalha em rede, numa parceria de universidades, museus, espaços de arte, centros culturais, entre outros.

Buscamos a convergência de ideias, projetos e processos para a construção de um espaço compartilhado com base na América do Sul, tanto em suas cidades como em seus espaços naturais –ou mesmo em outros lugares (Madri, Berlim, Cotonou, Melbourne e Tóquio), que por empatia com o projeto ou em razão do trabalho em colaboração situem-se de uma maneira "bienalsur".

A primeira ideia de algum projeto é, em certo sentido, a ideia completa. Apresenta-se como um flash no qual todo o conceito aparece em um segundo. Ao ser compartilhado, o projeto começa a se desdobrar e a crescer na soma de vozes que vão construindo-o.

Nesse caso, a de Aníbal, a minha e a daqueles com quem sentamos para conversar, desenvolver e enriquecer esse projeto.

Entre o instante de nascimento da ideia de um projeto e sua concretização interpõem-se muitas e variadas situações, tomadas de decisão, tensões, descobrimentos... Mas o nume, o fulgor inicial, continua lá, naquele instante, naquele flash que lhe deu vida. Um momento que sempre levará como música de fundo os acordes de um concerto de Franz Liszt conduzido pelas mãos sedutoras de Martha Argerich.

DIANA WECHSLER, 55, historiadora da arte, é uma das idealizadoras da Bienalsur.


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