Folha de S. Paulo


Arquivo Aberto: Perto do coração iluminado

Arquivo Pessoal
A partir da esq., Francisco Ramalho Jr., Oscar Kramer e Hector Babenco no Festival de Cannes de 1998
A partir da esq., Francisco Ramalho Jr., Oscar Kramer e Hector Babenco no Festival de Cannes de 1998

Em 1995, eu estava na Argentina com Hector Babenco procurando lugares para produzir um filme. Hector tinha um breve argumento baseado em suas memórias de juventude em Mar del Plata; descobriu que Ricardo Piglia, já um escritor conhecido, havia morado na mesma cidade e convivera com jovens que tentavam capturar a aura de pessoas em fotografias.

Assim, Ricardo escreveu com Hector o roteiro de "Foolish Heart" (coração tolo), nome da canção tocada por Bill Evans que Hector amava. Mas Ricardo não tinha prática nos aplicativos de roteiros e coube a mim a tarefa de transcrever o manuscrito para o programa de texto.

Pretendíamos produzir o filme em modelo semelhante ao que empregamos em "O Beijo da Mulher Aranha": recursos brasileiros associados à participação de um elenco internacional. Como "Foolish Heart" seria filmado na Argentina, procuramos coprodutores argentinos que poderiam ajudar a encontrar financiamento. Nessa etapa, Oscar Kramer juntou-se a nós. Ele fora produtor associado de "A História Oficial", de Luis Puenzo, que recebeu o Oscar de filme em língua estrangeira em 1986.

"Foolish Heart" teve uma longa e acidentada preparação. Na história, dois casais vivem em duas épocas diferentes: a juventude e a maturidade. O protagonista masculino vive quando jovem em Mar del Plata, onde descobre um amor intenso. Ali, junta-se a amigos para uma missão engenhosa: fotografar a aura das pessoas. Corte rápido para a vida adulta: ei-lo transformado num cineasta reconhecido, de regresso a Buenos Aires para visitar o pai à beira da morte. Na capital, conhece uma mulher que pode ter sido o amor de sua juventude.

Precisávamos de um casal de atores para a juventude dos protagonistas e de outro para a fase adulta. Tentamos contratar Willem Dafoe, Nastassja Kinski, Irène Jacob e um então jovem intérprete, Stephen Dorff.
Enquanto nos esforçávamos em levantar recursos para as filmagens, pululavam problemas de agenda desse time. Os pares jovem e adulto não tinham datas compatíveis. Dafoe deveria contracenar com Nastassja Kinski –formando a dupla veterana–, mas quem estava livre no mesmo período que ele era Irène Jacob, a parceira que tínhamos imaginado para Dorff.

Tentamos outros nomes: Harvey Keitel para o lugar de Dafoe, Julie Delpy para o de Irène. A busca de locações nos levou a Portugal, onde teríamos a luz de inverno desejada nas datas disponíveis desses atores. Quando o projeto estava quase fechado, Hector me chamou de madrugada para ouvir um longo e difícil telefonema com Keitel. O ator nova-iorquino estava desistindo, porque não queria se deixar filmar parcialmente nu –como o roteiro determinava.

Justamente ele, que se mostrara totalmente despido alguns anos antes em "O Piano" (1993). Perdemos Keitel, e o projeto voltou à estaca anterior. Hector ficou desolado. Sua saúde já tinha sido afetada havia pouco por um transplante de medula.

Voltamos para Buenos Aires com uma decisão: o filme seria feito em espanhol, com atores argentinos e brasileiros. "Foolish Heart" foi filmado em 1997 em Buenos Aires, Mar del Plata e no Rio. Virou "Coração Iluminado". Estreou no Festival de Cannes, onde havíamos estado com "O Beijo da Mulher Aranha" e de onde tínhamos saído com um prêmio de interpretação para William Hurt.

Na programação, "Coração" foi escalado para a pior data: a véspera do encerramento do festival. Sabíamos que àquela altura os compradores/distribuidores de filmes já teriam partido. No entanto, conseguimos mostrar o longa a esse grupo. Ao final da sessão, ninguém apresentou proposta de aquisição. Os sonhos também terminam.

Logo depois de "Foolish Heart", Ricardo Piglia escreveu o romance policial "Plata Quemada", que ele mesmo roteirizou para uma produção argentina de grande sucesso. Anos mais tarde, Ricardo virou professor na prestigiosa Universidade de Princeton.

Hector retornou à historia do pai enfermo em "Meu Amigo Hindu", sua cinebiografia e último longa-metragem. Romances e filmes vivem da transfiguração do real. Ricardo, Hector e Kramer agora se foram. Ficaram os filmes, livros e sonhos realizados. Esses não partem da vida; pelo contrário, são o seu estofo.

FRANCISCO RAMALHO JR., 76, cineasta, é diretor de "O Galã", que estreia no segundo semestre.


Endereço da página: