Folha de S. Paulo


O rico anedotário dos obituários nos Estados Unidos

RESUMO Textos jornalísticos que fazem apanhados biográficos de pessoas mortas seguem padrão rigoroso de planejamento e execução. Por vezes, ficam prontos décadas antes do óbito de seus objetos. Reportagem narra encontro de obituarista do "NY Times" com autora de livro sobre a relação de personalidades com a morte.

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Bater as botas, ir para o beleléu, esticar a canela, virar presunto, vestir o paletó de madeira.

A língua inglesa tem outros: "the big sleep" (o grande sono), "bite the dust" (morder a poeira), "six feet under" (a sete palmos), "bought a one-way ticket" (comprou passagem só de ida).

Não é à toa que a humanidade criou tantos eufemismos para falar sobre o grande inexorável: a morte. Todo mundo tem encontro marcado com a mal-afamada, mas a maioria recorre a piruetas retóricas para dourar a pílula do remate inelutável. "As pessoas dizem que fulano passou desta para melhor. Onde é isso? Nova Jersey?", ironiza o jornalista Pete Hamill, 81.

Destacando vir "de uma longa linhagem de pessoas mortas", ele mediou há algumas semanas na Universidade de Nova York o painel "Escrevendo sobre a Morte". Ao seu lado, dois craques no assunto. Katie Roiphe, 48, lançou no fim de 2016 o livro "The Violet Hour: The Great Writers at the End" (a hora violácea: os grandes escritores no fim; The Dial Press). O título foi decalcado de "A Terra Desolada" (na tradução de Ivan Junqueira), poema de 1922 no qual T.S. Eliot cita o instante em que o sol se põe, o céu se cobre com a tal cor violácea e o crepúsculo "devolve o marinheiro à sua casa".

Thomas Stearns Eliot morreu aos 76, de enfisema. Ganhou o seguinte epitáfio, pinçado de outro escrito seu: "No meu começo está o meu fim. No meu fim está o meu começo". No começo de seu obituário no "New York Times" reside uma bela síntese de sua persona: "a figura quieta e cinzenta que deu novo significado à poesia em inglês".

Atribui-se a um lendário editor do jornal, A. M. Rosenthal (1922-2006), a máxima "se você tiver que morrer, é melhor morrer no 'Times'". O jornal é referência nesses textos póstumos. Sam Roberts, 69, o outro participante do painel, escreveu dezenas dos mais de 200 mil obituários publicados ali desde 1851.

Para a revista "Vanity Fair", imaginou como seu periódico registraria a morte de Jesus Cristo. Houvesse um "Times" à época, o relato começaria assim: "Jesus de Nazaré, um carpinteiro galileu que virou o pastor itinerante cujo apelo à piedade e cuja reputação como curador galvanizaram um contingente expressivo de fiéis, morreu na sexta, após ser crucificado naquela manhã, nas redondezas de Jerusalém, apenas dias após seus seguidores terem-no recebido triunfantemente na cidade como 'o ungido' e 'o filho de Davi'. Ele tinha cerca de 33 anos".

O filho de Ángel e Lina tinha um ano a menos quando se tornou o rosto-símbolo da Revolução Cubana, em 1959. A publicação nova-iorquina preparou então o primeiro de muitos obituários de Fidel Castro jamais publicados, pois esperava que ele fosse morrer a qualquer instante. O epílogo só chegaria 57 anos depois.

ANTECEDÊNCIA

É de praxe que as Redações alinhavem de antemão textos referentes a personalidades acometidas por doenças ou vítimas de acidentes. Em outros casos, a exposição constante de determinada figura pública ao perigo justifica a preparação do compilado biográfico. Na maioria das vezes, entretanto, é a idade avançada do vulto da cena nacional ou estrangeira que cura qualquer bloqueio criativo do obituarista.
Esse é o principal critério de sites como o britânico Deathlist (lista da morte), que elenca "50 celebridades selecionadas por um comitê de experts por sua probabilidade de morrer durante o ano".

O ator Kirk Douglas, 101, está no topo do ranking de 2017. A rainha Elizabeth 2ª, 90, aparece em 24º lugar. Seu marido Philip, duque de Edimburgo, 96, surge na sexta posição. Até a conclusão desta edição, na quinta (23), havia dois "bingos" nessa "cartela" de mau gosto pronunciado: a atriz Mary Tyler Moore (48º lugar), morta em janeiro, aos 80 anos, e o jogador sul-africano de rúgbi Joost van der Westhuizen (47º), que tinha uma doença do neurônio motor desde 2011 e morreu em fevereiro, aos 45.

O filtro etário pode se revelar um embuste, previne Roberts. "Cinco obituaristas escreveram o suposto texto final sobre David Rockfeller. Todos estão mortos." Enquanto isso, o neto de John Rockfeller é, aos 101, o bilionário mais velho do mundo, segundo a "Forbes".

Não lhe terá faltado tempo, supõe-se, para meditar sobre o fim que almeja para seus despojos. Nos EUA, o número de cremações cresceu significativamente: em 1999, 25% dos corpos passavam por esse procedimento; em 2015, eram 49%, segundo a Associação de Cremação da América do Norte. No Brasil, cerca de 5% dos mortos foram incinerados em 2016, segundo a associação dos cemitérios e crematórios do país.

As explicações vão da crise financeira (cremar, nos EUA, pode ser dez vezes mais barato do que enterrar, numa tabela de preços oposta à de São Paulo, por exemplo, onde a cremação no sistema municipal não sai por menos de R$ 941, quase R$ 85 acima do valor-base do enterro) à queda do apelo da religião na população (quase um quarto dos americanos se declara não religioso).

A mesa na Universidade de Nova York também discutiu a monetização de obituários, um dos expedientes que podem ajudar a equilibrar contas em vermelho, segundo os convidados. O "Times", por exemplo, abre sua seção mortuária a textos pagos. Por quatro linhas, desembolsam-se US$ 263 (R$ 805); cada foto rende US$ 200 (R$ 612) aos cofres do diário; para que o adeus seja incrementado com um título, investem-se mais US$ 52 (R$ 159).

QUASE MORTE

Katie Roiphe, de "Violet Hour", quase se foi –outro eufemismo. "Tinha 12 anos. Um dia, parei de respirar num táxi, a caminho da emergência. Desde então, sou obcecada pela morte", diz, após adiar por 15 dias a entrevista ("tive uma morte na família").

A menina lia enquanto convalescia de uma pneumonia. E não qualquer obra. "Devorava livros sobre pessoas morrendo em grandes números –crianças, guerras, massacres, corpos nus em trincheiras."

Ao crescer, escreveria seu próprio título sobre o tema. Nele, destaca como cinco grandes pensadores encararam a aproximação da morte. Aqui jaz Susan Sontag, a intelectual que tem dificuldade em racionalizar sua despedida. Ela morreu de câncer, aos 71, em 2004.

Aqui jaz Sigmund Freud, que, mesmo sob dor lancinante, aceitava no máximo aspirina, para não minar sua lucidez. Ainda saudável, ele escreveu sobre a forma como vivos admiram o morto "como alguém que completou uma tarefa muito difícil". Viciado em charutos, submeteu-se a 33 cirurgias para combater um câncer na mandíbula. Sucumbiu a uma overdose de morfina, numa possível eutanásia, aos 83, em 1939.

Aqui jaz Dylan Thomas (1914-53), que sofreu um colapso em seu apartamento no hotel Chelsea, em Nova York. O artista que estourou com poemas como "E a Morte Perderá seu Domínio" alavancou a fama boêmia do endereço –que inspirou de Bob Dylan a Leonard Cohen.

Aqui jaz Maurice Sendak, o autor que fez ecoar em sua literatura infantil (da qual "Onde Vivem os Monstros" talvez seja o exemplar mais célebre) uma obsessão inata pela morte –desenhava padeiros gordos que o cozinhavam dentro de uma torta, além de leões que o engoliam. Morreu das complicações de um derrame, aos 83, em 2012.

Aqui, por fim, jaz John Updike, que recebeu "as piores notícias" no hospital e transformou "dor em mel", escrevendo um derradeiro livro de poesia. Morreu também de câncer, aos 76, em 2009.

Roiphe menciona ainda "a morte feliz de William Blake (1757-1827), que sentou na cama e viu anjos", e a partida menos honrosa de Honoré de Balzac (1799-1850), "que se matou com café e trabalho".

Para a autora, o homem contemporâneo só aceita a "morte limpa", no hospital moderno. "Ninguém mais morre em casa. Puxamos a cortina para manter a morte fora de vista. Fantasiamos que a medicina sempre pode nos curar."

Em 2006, ela escreveu para o "Times" sobre a morte de seu pai: o sr. Roiphe voltava de um jantar com amigos e teve uma parada cardíaca. Desfaleceu no lobby do prédio, ao lado da mulher. "Não houve preparação. Nenhuma última grande conversa."

A ideia de travar um diálogo final com o ente querido, "no qual tudo será resolvido, perdoado etc.", não passa de um capricho, lembra a escritora. A morte não respeita cronogramas.

Que o diga Philip Roth, que em "Patrimônio" descreveu o "dénouement" fortuito da mãe num restaurante, em 1981. "Tinham acabado de lhe servir sopa de mexilhões, um de seus pratos favoritos; para surpresa de todos, ela anunciou: 'Eu não quero essa sopa'." Foram as últimas palavras de Bessie.

ANNA VIRGÍNIA BALLOUSSIER, 30, é jornalista da Folha.


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