Folha de S. Paulo


As imagens sem legendas de Mauro Restiffe

Mauro Restiffe
fotografia de Mauro Restiffe, da série
fotografia de Mauro Restiffe, da série "Tlatelolco", 22, de 2010

RESUMO Mauro Restiffe publica livro em que fotos produzidas ao longo de 20 anos constituem percurso visual pautado mais por sensações do que por narrativas ordenadas. Sem legendas ou organização serial, os registros ilustram um par de motivos caros ao artista: a arquitetura moderna e a a presença do pictórico no espaço.

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Mauro Restiffe lançou seu primeiro livro, com uma seleção de imagens realizadas ao longo de 20 anos [org. Charles Cosac, Cobogó, 272 págs., R$ 140]. Sem título, sem qualquer texto introdutório ou crítico, nem mesmo legendas, o volume revela muito sobre o projeto artístico desse que é um dos mais importantes fotógrafos em atividade no Brasil.

À primeira vista, o artista se apoia no famoso diagnóstico de Walter Benjamin, para quem a fotografia, sem o apoio de legendas, permaneceria vaga e aproximativa. De certa forma, é justamente esse o objetivo. Ao abrir mão de associar informações às fotos –as legendas estão num encarte–, ele propõe um percurso visual impreciso, por vezes opaco, que estimula um fluxo de sensações e memórias de caráter histórico, cultural ou afetivo. Há uma confiança resoluta na força das imagens e, ao mesmo tempo, a consciência de que seu potencial está em sua condição ambígua, no que elas são capazes de revelar e no que não são.

O problema não é novo, tampouco é bem resolvido. Sabe-se que a fotografia não é confiável, que ela pode ser manipulada das mais diversas maneiras, mas ainda se acredita nela. Mesmo no século 21, seu estatuto de prova, seja em jornais, revistas de moda ou álbuns de família, raramente é questionado. Uma das estratégias de Restiffe para lidar com a questão é investir nos vínculos históricos entre a fotografia e a pintura.

Por um lado, sua obra nos lembra que, até o surgimento da técnica fotográfica, o papel social da pintura esteve ligado inexoravelmente à ideia de representação, aproximando-se muito, portanto, das funções assumidas desde então pela fotografia. Por outro, seu trabalho se comporta muitas vezes como a vidraça opaca de "Fresh Widow" (1920), o primeiro objeto assinado por Rose Sélavy, célebre pseudônimo de Marcel Duchamp. Réplica em miniatura de uma janela francesa com os vidros cobertos por couro preto, a obra denunciava o esgotamento da definição da pintura como uma janela aberta para o mundo, proposta por Alberti.

Restiffe sabe que, desde então, a provocação de Duchamp se estende a qualquer tipo de imagem com pretensões iconográficas ou iconológicas. A pintura está presente em todo o livro, de forma direta ou como metáfora, fazendo com que o parentesco entre os dois tipos de imagem se torne um dos eixos do trabalho. Fotos de janelas, espelhos, reflexos e molduras, além de citações a Degas, Ingres e outros momentos célebres da história da arte, pontuam toda a edição.

Suas fotos se situam entre a pintura e a documentação, o desejo e o fato, o indivíduo e a história, ora pendendo para um lado, ora para o outro.

Em galerias e museus, Restiffe costuma apresentar seus trabalhos em séries, o que sugere uma leitura narrativa dos conjuntos. Mas, no livro, ele caminha num sentido oposto, isola imagens, embaralha assuntos e dificulta a identificação dos registros. As duas primeiras fotos da edição deixam claro que o intuito é dificultar leituras imediatas: uma piscina opaca e escura, sem transparência, e, na sequência, uma tela em primeiríssimo plano, porém à sombra, de conteúdo inacessível. Ambas são imagens de imagens que não revelam o que são.

Um pouco adiante, nos deparamos com uma fotografia repleta de claridade e de reflexos, porém igualmente enigmática. Trata-se de um detalhe de uma construção de vidro, pouco informativo justamente pelo excesso de sobreposições. Nas legendas do encarte e a partir de conversas com o artista, descobre-se que a piscina da primeira foto foi clicada numa das casas do arquiteto mexicano Luis Barragán; que a pintura na segunda imagem é uma tela de Poussin na emblemática casa de vidro de Philip Johnson, em Connecticut; e que a terceira foto foi tirada no bairro da Pampulha, em Belo Horizonte.

Essas informações dão pistas sobre outras obsessões do artista: o lugar da arquitetura moderna nas sociedades ambas apontam para uma inquietação mais ampla sobre o lugar das utopias nos dias de hoje, em especial sobre a pretensão (moderna ou contemporânea) de se transformar eticamente o homem por meio de novas formas de habitar, circular e representar –ou seja, por meio da arte.

VIAJANTE

Restiffe é uma espécie de fotógrafo viajante que não se preocupa em identificar os territórios que visita. Suas fotos são quase sempre o oposto do que seria um cartão-postal, podem representar qualquer lugar. Mesmo assim, o Brasil e a Rússia, dois lugares marcados pelo estigma das promessas não cumpridas, tornaram-se marcantes em sua trajetória.

No caso brasileiro, tem destaque a arquitetura moderna, em especial a obra de Oscar Niemeyer (1907-2012). As fotos do prédio do antigo Detran paulista (hoje ocupado pelo Museu de Arte Contemporânea da USP) em obras sublinham a decadência, o abandono e o aspecto insalubre adquirido em algum momento pelo lugar.

Outro exemplo é o Memorial da América Latina, registrado em chamas, em 2013, no canto de uma cena inóspita dominada pelos trilhos da estação Barra Funda. As paisagens urbanas de Restiffe, em São Paulo, Brasília ou Moscou, possuem uma monumentalidade épica e trágica, compatível com a dimensão dessas cidades.

Desde os anos 1990, ele trabalha exclusivamente com uma câmara analógica e filme preto e branco de altíssima sensibilidade. São suportes de ISO 3200, feitos para fotografar com pouca luz e que, em consequência disso, produzem imagens muito granuladas, frequentemente confundidas com gravuras ou desenhos, sobretudo por olhos acostumados ao brilho das imagens digitais. Essa materialidade se tornou uma questão central para Restiffe, conferindo a suas fotos a aparência de pertencimento a um passado distante e indefinido. Ele registra o tempo sedimentado, o avesso do momento decisivo de Cartier-Bresson.

Em Brasília, o fotógrafo produziu a série "Empossamento" durante a primeira investidura de Lula, em 2003, e "Oscar", quando conseguiu se infiltrar no Palácio do Planalto para registrar os bastidores do velório de Niemeyer. Nas duas ocasiões, o trabalho lida diretamente com a tradição da fotografia documental e jornalística, sem se adequar de todo a esse perfil.

As imagens foram realizadas a partir de um ponto de vista distanciado, o que vai na contramão do conselho de Robert Capa (1913-54), para quem uma fotografia não seria boa se seu autor não estivesse perto do objeto/fato capturado.

Em "Empossamento", a ocupação do espaço público parece um tanto desordenada e dispersa, sobretudo nas fotos do fim da festa. O fato de Restiffe apresentar suas imagens no contexto das artes visuais, em ampliações de grandes formatos, retira o caráter factual do trabalho, aproximando-o, não sem ironia, da pintura histórica.

A diferença é que ele não procura representar uma cena exemplar. Em seu trabalho, a história não tem heróis, mas a aparência densa e morosa do tempo acumulado em cenas banais. Por vias tortas, ao optar pelo incerto, Restiffe vira o jogo. Com toques de melancolia, alcança estranha atualidade.

HELOISA ESPADA, 42, doutora em história da arte pela USP, é curadora de artes visuais do Instituto Moreira Salles.


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