Folha de S. Paulo


Arquivo aberto: o adeus a Eduardo Coutinho

Rio de Janeiro, 2014

O celular tocou domingo de manhã. O pai atendeu. "Sim, é o Escorel. Quem fala?" Não era a mãe, não era a irmã, só podia ser o Cinema. Era o Cinema que levava o pai pro Irã às vésperas de a mãe parir, era ele quem capotava o pai Serra da Mantiqueira abaixo, dormindo no volante de exaustão depois da filmagem. O Cinema trazia aquelas mulheres que ameaçavam a harmonia familiar e um monte de desilusões com os colegas.

A coisa não era boa, ele parecia preocupado. Perderam o rolo de filme? Incendiou a moviola? Agora não tinha mais nada disso, talvez tivessem perdido um HD. O lábio dele ficou branco. Despediram-se da avó, que, elegante, fingia entender o que se passava. Não gostava de deixar claro que já não ouvia quase nada. Entendeu que eles tinham que ir correndo, a visita tinha sido rápida. Bastava.

A realidade não tem maquiador nem figurinista. É a PM indignada ao perceber que os bombeiros foram chamados antes deles, enquanto a médica dos bombeiros te dá a notícia de que você já não pode entrar no apartamento. É o olhar dela te explicando por que razão havia tantos anos o Coutinho não te convidava para ir em casa. Não tem refletor mais acachapante do que o sol do meio-dia. Nada mais que se possa fazer. Em três parágrafos, encerra-se uma vida.

Arquivo pessoal
Da esquerda para a direita, Rogério Rossini, Eduardo Coutinho, Edgar Moura, Elizabeth Teixeira, Vladimir Carvalho, Jorge Saldanha e Eduardo Escorel, durante o festival de cinema do Rio, em 1984

Pensar, tomar providências, colher as informações necessárias. Não adianta desesperar nem chamar a produção. Em poucas horas, todos terão uma história, uma versão, uma opinião sobre os fatos.

A vizinha sugere que inventem outra "causa mortis". Pai e filha se olham incrédulos. O pai é grande, controlado, grave. Impõe respeito. A vizinha logo some, mas os figurantes se multiplicam. É preciso tirar o pai dali. Beber, comer, dormir. Depois tomar um café. Ela precisa fumar. Talvez o amigo do pai dissesse "não falei que era bobagem parar de fumar!". E riram os dois, pai e filha, tentando se consolar, no táxi a caminho de casa.

Quando ela acordou, no fim da tarde, todos tinham um episódio pessoal vivido com o amigo do pai sendo relatado nas redes. Mas para ela o amigo do pai sempre esteve ali. Era uma voz quando ainda boiava no útero da mãe, um adulto que tratava crianças como iguais quando, tarde da noite, ela e a irmã acompanhavam os pais àqueles festivais de cinema no Hotel Nacional. Um parceiro que compreendia o cinema do pai, as angústias do pai, os ideais do pai. Era o amigo que nunca tinha ido embora.

Agora todos choravam a perda do gênio, do grande mestre, do cineasta inigualável. "Ele frequentava a minha casa", declarou um. "O maior", dizia outro. Ela se perguntava onde estava essa gente toda enquanto o amigo vivia. Que fosse gênio. Quem ia fazer falta mesmo era o amigo.

Cigarros intermináveis, a cinza pendendo da guimba feito incenso, entre os dedos magros de uma mão que gesticulava acompanhando uma boca que não parava de falar. A ranhetice hilariante, a ironia mordaz, o inconformismo inabalável, a certeza no improvável.

O mau humor na chegada, "meu uísque não é assim!". A patada no segundo seguinte, "vão me deixar fumar nesta casa?". E amor cinco minutos depois, quando, sentado, copo numa mão, cigarro na outra, ele olhava em volta, via aquele monte de jovens ávidos por estar com ele e perguntava: "É seu aniversário, querida?". Não era.

Pra ele, dizia: "Os amigos fazem cinema, coitados... Caíram nessa roubada feito você e o pai. Talvez vocês possam ensinar alguma coisa para a moçada".

"Não tenho nada a ensinar", vaticinava ele. E passava as horas seguintes ensinando um mundo. Aos amigos, ela dizia: "Eles estão envelhecendo, tenho medo que entristeçam. Gente jovem sempre dá uma animada, né? Vai ser bom para os velhos bater papo com vocês".

A verdade, não tinha como contar. Era uma cerimônia de adeus.

LAURA ESCOREL, 41, é designer e editora.


Endereço da página: