Folha de S. Paulo


Leyla Perrone-Moisés fala sobre a resistência da ficção

RESUMO Em volume de ensaios, a crítica Leyla Perrone-Moisés disseca a literatura contemporânea, sobrevivente dos anúncios de sua morte. Na entrevista abaixo, ela diz que a marca da produção nacional de hoje é o realismo e sustenta que os livros resistirão ao ceticismo de seus autores. Leia também a resenha do livro.

Karime Xavier/Folhapress
A crítica Leyla Perrone-Moisés em seu apartamento, em São Paulo
A crítica Leyla Perrone-Moisés em seu apartamento, em São Paulo

"As notícias da minha morte foram muito exageradas." É a essa frase de Mark Twain que a crítica literária Leyla Perrone-Moisés, professora emérita da USP, recorre para sacramentar: a literatura continua vivinha.
Em seu livro mais recente, "Mutações da Literatura no Século 21" [Companhia das Letras, 296 págs., R$ 44,90], ela discorre sobre os vaticínios apocalípticos de morte da cultura literária na virada do século, contesta-os e então traça as tendências da crítica e da produção contemporâneas.

É uma obra escrita no calor dos acontecimentos, tratando de autores como David Foster Wallace (1962-2008), o Nobel J.M. Coetzee e Jonathan Franzen, entre outros –além dos brasileiros Nuno Ramos, Ricardo Lísias e Bernardo Carvalho. Em entrevista à Folha, Perrone-Moisés discute os principais pontos do novo trabalho.

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No livro, a senhora volta a criticar a análise literária feita pelo viés dos estudos culturais, que usam como referência outras disciplinas. Por quê?

Nos estudos culturais, há a tendência de tratar a obra literária apenas como documento. E, pior do que isso, como panfleto: a defesa do feminismo, as acusações contra os povos colonizadores... Os estudos culturais entram no terreno da sociologia, da política. Quem se lança nesse tipo de estudo muitas vezes não tem formação histórica, sociológica e política suficiente para que aquilo se torne um estudo relevante dessas áreas. Pegam um autor daqui, outro dali. Esses estudos podem ter algum valor, mas acho que não são estudos de literatura.

Existe hoje um discurso sobre o "lugar de fala", segundo o qual o representante de um grupo dominante não deveria falar sobre minorias. Como a sra. vê essa questão?

É o extremo caricatural ao qual podem chegar os estudos culturais como ideologia. Certa vez, encontrei uma pesquisadora que estudava mulheres escritoras do século 19 no Brasil. Perguntei se havia muitas e se eram boas. Ela disse: "Se são poucas e não são boas, é porque os homens não as deixaram desenvolver seus talentos".

E as irmãs Brontë e a Jane Austen tinham condições ideais para escrever? Não temos grandes escritoras brasileiras nesse período, precisamos reconhecer. As razões são certamente históricas e sociológicas, e devem ser estudadas como tal.

Não é a temática que define o literário. Literatura não é "que", mas o "como".

A sra. parece se incomodar com a tese de que a literatura constitui um discurso sem especificidade. Defende então uma essência do literário, um traço intransferível?

Não existe uma essência do literário. A literatura trata de tudo. Mas, para estudá-la, é preciso partir do objeto texto, ver como ele é construído para alcançar sua significação. Ao longo da história, as grandes obras literárias revelam muito melhor a realidade social do que as análises propriamente históricas ou sociológicas. E muitas vezes a intenção do autor é contrariada pela própria obra.

Ivan Padovani

De que forma?

Balzac, por exemplo, era um monarquista, a favor da Igreja Católica e da hierarquia aristocrática. Mas era tão grande observador que "A Comédia Humana" prova que aquele sistema hierárquico era criminoso e produzia a infelicidade. Não é questão de acreditar que os autores sejam profetas inspirados. A literatura coleta seus dados na realidade e capta relações imprevistas.

No livro, a sra. cita uma obra de Leonid Tsípkin sobre Dostoiévski, "Verão em Baden-Baden", em que o autor questiona o antissemitismo do russo. Um grande escritor pode ser um homem medíocre?

Sim, um escritor pode escrever contra si. A grandeza da obra de Dostoiévski tocava Leonid Tsípkin para além do antissemitismo. Tsípkin não admirava o homem Dostoiévski, mas o escritor. Entramos no assunto muito vasto da intenção do autor. Muitos só descobrem o que queriam escrever depois de ter escrito. Escrevem para saber.

A senhora fala, então, da escrita como um processo de descoberta. Fala-se, no Brasil, da relação profunda dos escritores com os departamentos de letras. Essa proximidade é boa para a criação?

Melhorar não melhora, mas também não atrapalha. Desde o século 19, muitos autores foram teóricos e críticos. No romantismo, acreditava-se na inspiração, no gênio. Na modernidade, os escritores tomaram consciência de que a escrita literária é também uma técnica. Há bons escritores com formação acadêmica.

A senhora reclama do sumiço da literatura dos currículos escolares, aqui e no mundo

Tenho analisado os parâmetros curriculares, e a literatura no Brasil passou a fazer parte de um conjunto intitulado Linguagens, Códigos e Suas Tecnologias. Dentro dele, a literatura é apenas mais um tipo de linguagem, e pouco importante.

É verdade que o conceito de literatura nunca pôde ser definido com precisão, porque ele é histórico e mutante, mas hoje não há critérios para se definir o valor de uma obra.

Apesar disso, alguns elementos continuam básicos: literatura é uma arte da linguagem. Ela tem significados complexos, em vários níveis. Trata de questões relevantes para o homem e sua existência. É uma forma de conhecimento para o leitor, de si mesmo e dos outros.

A autoficção andou na moda no Brasil. Houve quem visse nesse "boom" uma desconexão com a realidade do país. A literatura voltada para o presente ainda é possível? Há oposição entre histórico e estético?

Ainda existe e está sendo praticada. De todo modo, a autoficção pode falar do presente social, político ou psicológico. O Ricardo Lísias é um exemplo. Ele fez bastante autoficção, mas quase sempre com fundo político.

Por que no Brasil não há os grandes romances que retratam o país, como nos EUA?

A razão é a homogeneidade relativa dos EUA, um país com crenças comuns. Já o Brasil é muito diferente de Norte a Sul, tem muitas culturas; englobar um país inteiro com tanta disparidade é mais difícil. O livro que chegou mais perto disso foi "Viva o Povo Brasileiro", de João Ubaldo Ribeiro; mesmo assim, era regional.

A senhora vê algo de particular na literatura produzida no Brasil?

O mais interessante, que não tenho visto em outros países de forma tão flagrante, é um realismo da linguagem. No livro "Reprodução", do Bernardo Carvalho, há 50 páginas de um monólogo ideológico que mostra o modo de pensar de um personagem medíocre, até cômico [o narrador como que "incorpora" um homem preconceituoso, adotando raciocínio e retórica cheios de clichês raivosos].

Em "O Tribunal da Quinta-Feira", do Michel Laub, há uma crítica contundente da internet, mostrando como o politicamente correto e o bem pensante oficial podem se tornar uma coisa funesta nas redes sociais. Ele não trata do assunto como um ensaísta, mas reproduzindo os diálogos e as mensagens eletrônicas.

Também há "A Tradutora", do Cristovão Tezza, em que ele intercala trechos de um ensaio que a personagem está traduzindo na narrativa das experiências pessoais dessa personagem.

Por que isso é interessante?

A linguagem é a única coisa que pode ser reproduzida de modo fiel. A realidade não, porque o referente está fora da linguagem. Não que esse seja o único caminho da literatura atual, mas é interessante. A crítica [dos autores contemporâneos] aos discursos correntes atinge em cheio as práticas sociais que eles sustentam, como a intolerância, o racismo ou a simples tolice.

Houve quem acreditasse num esgotamento do realismo. Mas há escritores que ainda usam seus recursos. O realismo ainda tem possibilidades de exploração?

Nunca está esgotado, porque o real nunca está esgotado. O problema do realismo é o que já citei: a linguagem é um meio de representação do real na sua ausência. A busca do realismo permanece intensa.

O mais visível, na literatura atual, é a volta de formas antigas de representar a realidade. Se há formas de representação efetivas criadas no passado, por que não retomá-las? Com isso, o romance ainda usa recursos do século 19, é claro que com algumas alterações.

Alguns teóricos dizem que essa busca por inovação, pelas vanguardas, causou a desvalorização da literatura no século 20, mas eu acredito que foi a sociedade de consumo e a indústria cultural que causaram o rebaixamento da literatura.

Mutações Da Literatura - Século XXI
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Como o fim das utopias políticas marca a literatura?

A literatura, como a política, está num momento distópico. A diferença agora é uma ausência de projeto. Antes, mesmo as obras distópicas tinham uma esperança. Orwell fazia a crítica do futuro que imaginava porque acreditava que aquilo pudesse ser combatido. Atualmente, quando você pega um Michel Houellebecq, encontra cinismo. Como se dissesse: as coisas são assim, não dá para mudá-las e é possível que fiquem ainda piores.

Mas o próprio ato de escrever não é uma resistência a esse niilismo?

É claro! Escrevi muito sobre Fernando Pessoa. Ele escreveu uma obra imensa para dizer que não valia a pena publicar, que não era nada e nunca seria nada. Mas e essa força que o fez escrever tudo aquilo? Essa força que move os escritores é certamente uma resistência.

MAURÍCIO MEIRELES, 28, é jornalista e colunista da Folha.


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