Folha de S. Paulo


A psique de coxinhas e petralhas

RESUMO Para além da polarização na arena da política, a inclinação de indivíduos a posições à esquerda ou à direita existe em qualquer grupo social, influencia diversos momentos da vida e pode ser aferida por pesquisas psicológicas. O texto propõe que a consolidação dessa tese leve à coexistência pacífica dos dois polos.

Moacyr Lopes Junior - 6.abr.2016/Folhapress
Fachada de prédio no largo do Arouche com bandeira do Brasil e do PT estendidas nas janelas
Fachada de prédio no largo do Arouche com bandeira do Brasil e do PT estendidas nas janelas

A oposição entre direita e esquerda parece ser uma daquelas coisas que quanto mais se usa mais ficam estranhas. Nem tanto devido a óbvias manifestações de seu vigor –como as simétricas histerias que despertaram a ex-primeira-dama Marisa Letícia e a blogueira cubana Yoani Sánchez, por exemplo–, mas porque essa polarização é de natureza antes de tudo cultural e determinada por fatores que mal começam a ser descobertos pela pesquisa em ciência política.

Direita e esquerda estão muito longe de se distinguir apenas na política, como é o caso do atual arranca-rabo entre coxinhas e petralhas, âmbito em que tal dicotomia se consolidou na modernidade. As mais recentes pesquisas demonstram que essas duas predisposições básicas existem entre os indivíduos de qualquer grupo social, mesmo que a prevalência da moderação quase sempre obscureça a significância dos extremos.

No geral, os indivíduos de direita são mais avessos à incerteza. Ficam desconfortáveis em situações incomuns ou imprevisíveis. Os de esquerda, ao contrário, são inveterados novidadeiros.

Os de direita estão sempre muito atentos a qualquer sinal de ameaça, seguem instruções a menos que sejam obviamente falsas, evitam objetos e experiências que não lhes pareçam familiares.

Os de esquerda são mais atraídos por novas informações, mesmo quando não gostam delas. Só seguem instruções quando não têm escolha, não temem complicações e quase sempre topam novas experiências, mesmo quando elas envolvem algum risco.

Mas esquerda e direita também diferem em arte, humor, preferências gastronômicas, lazer, estilo, destinos de viagem, modelos de automóveis ou decoração.

São bem contrastantes seus modos de procurar informação, de pensar e de enxergar os outros. Suas arquiteturas neurais são muito distintas, seus sistemas nervosos não ficam antenados nas mesmas coisas e é díspar até aquilo que as estimula e excita.

Em geral, o que mais causa curiosidade na tribo da esquerda costuma ser visto como perigo pela da direita. Naquilo que a primeira enxerga ambiguidades intrigantes, a outra identifica debilitante insegurança. Por isso, choques acabam por se dar entre indivíduos de esquerda, que valorizam o novo, que preferem a expressão individual e que toleram as diferenças, e indivíduos que se inclinam mais para ordem e segurança, respeitam tradições e exaltam a lealdade grupal.

É verdade que são contrastes emocionais, psicológicos e, provavelmente, até mesmo biológicos, que se manifestam num gradiente contínuo entre duas extremidades quase sempre minoritárias. Mas o amplo centro, resultante de insuficiente predisposição para um dos lados, costuma ser persuadido por um deles, em vez de ziguezaguear ou de ficar à deriva.

Esses são achados cruciais, pois permitem evitar as sempre duvidosas classificações baseadas apenas em opiniões políticas, altamente dependentes de circunstâncias, e que nem poderiam se formar antes da adolescência.

O que vários pesquisadores andam mostrando é que as pessoas se inclinam para um dos lados por estarem, desde muito cedo, de certa maneira "psicologicamente programadas".

Essa expressão não é rigorosa, pois a analogia com programação é inadequada para se abordar aspectos relativos à personalidade. Mas talvez seja a que melhor se aproxime e transmita o estado da arte, pois há muitas evidências de que a hereditariedade desempenhe papel dos mais relevantes nessas predisposições, mesmo que elas não cheguem a ser genéticas.

As evidências em que se baseia essa tese sobre fortíssimas predisposições para um dos lados da oposição se multiplicaram exponencialmente quando a internet começou a permitir a realização de enquetes capazes de facilmente obter centenas de milhares de respostas anônimas. Nessa linha, o pioneirismo parece ter sido do website hunch.com, rapidamente comprado pelo e-Bay por US$ 80 milhões.

O mesmo não ocorreu, contudo, com o neuropolitics.org, que se dá por missão desvendar as diferenças entre liberais e conservadores americanos, dois termos que melhor exprimem a oposição esquerda/direita por lá.

Também continua firme, desde 2001, o politicalcompass.org, britânico, dedicado a desfazer a frequente confusão com outra disjuntiva: a que opõe propensões autoritárias e libertárias. Distinção bem esclarecida pela psicologia desde 1954.

O maior obstáculo é que não se deve confiar em resultados de enquetes on-line, pois são sujeitas a desvios impostos pela impossibilidade de se apoiarem em amostras estatisticamente representativas, embora imensas. Daí porque tais resultados só se tornam evidências científicas se confirmados por estudos que respeitam as melhores metodologias e se aceitos por conceituados periódicos.

No meio de campo, entre enquetes não confiáveis e rigorosos estudos científicos, mostram-se bem significativos os frequentes levantamentos realizados por empresas especializadas para partidos políticos ávidos em conhecer melhor as preferências de suas bases militantes e eleitorais. Ou, do outro lado do balcão, estudos realizados por organizações cuja missão é vasculhar os bastidores desses partidos com o propósito de dar maior transparência ao jogo político.

Contudo, as melhores evidências sobre a tese de predisposições à esquerda ou à direita foram as que já surgiram em pesquisas psicológicas que não se voltaram diretamente à clivagem política, mas, em vez disso, procuraram estabelecer características ou padrões de personalidade.

TRAÇOS

Questionários consolidados nesse gênero de pesquisa evitam questões com conotação ideológica, fazendo perguntas do seguinte teor: se seu pai permitisse, você lhe daria um tapa na cara num ensaio de peça de teatro? Quando de manhã você sai correndo para o trabalho, é frequente que deixe uma bagunça em sua casa ou apartamento? O que é mais importante ensinar às crianças: bondade ou respeito?

Outras vezes esses testes propõem alternativas que descrevam melhor o jeitão de quem responde: excêntrico ou convencional? Flexível ou enérgico? Cabeça aberta ou moralista? Imaginativo ou prático? Outros procuram identificar preferências que podem ser entre cidades pequenas ou grandes, filmes românticos ou comédias, livros sobre música ou sobre esporte.

Também há experiências que solicitam acordo ou desacordo com afirmações do tipo: há pessoas que valem mais do que outras; haveria menos problemas neste país se as pessoas fossem tratadas com mais equidade; todas as nações seriam iguais num mundo ideal; provavelmente é bom que certos grupos estejam no andar de cima e outros no andar de baixo.

Tem sido muito usada uma medida que ficou consagrada com os nomes dos dois psicólogos que a lançaram em 1968: a escala Wilson-Patterson de conservadorismo. Mas, no âmbito da ciência política, o emprego dessa medida costuma ser combinado com um índice bem mais recente que explora diversos dilemas mediante uma bateria de perguntas que sempre começam com a seguinte frase: "A sociedade funciona melhor quando...". Por exemplo: funciona melhor quando são seguidos valores tradicionais, ou quando eles são ajustados para corresponder a circunstâncias que mudam?

Mas todos esses procedimentos dão resultados ainda mais impressionantes em estudos que se concentraram na análise de histórias de vida afetiva de filhos adotados ou que foram trocados por erro hospitalar.
Costumam ilustrar a dimensão hereditária dos traços de personalidade que definem o contraste entre esquerda e direita. Indivíduos com predisposição a um dos lados criados por famílias com predisposição inversa, por terem sido adotados, ou por trapalhadas de maternidade, até podem não comer o pão que o diabo amassou, mas passam quase uma vida inteira na condição de estranhos no ninho ou de patinhos feios.

Outra vez, porém, são estudos de caso sem qualquer base estatística, pois é muito raro que se consiga entrevistar o trio: o indivíduo, sua família biológica e a que o adotou. E barbeiragens em maternidades também não vêm à público com grande frequência, além de serem raras as vítimas e famílias envolvidas que se dispõem a conceder entrevistas em profundidade aos pesquisadores que as procuram.

O mesmo não ocorre, contudo, com os numerosos estudos sobre gêmeos, nos quais são muito fortes as semelhanças de inclinação que confirmam a natureza hereditária. Os coeficientes de correlação são quase sempre altos: superiores a 60 de 100 para gêmeos idênticos e a 35 de 100 para heterozigóticos.

Mostram-se precárias, porém, as evidências de que um determinado alelo (segmento de DNA que afeta uma característica, podendo ser recessivo ou dominante) predisponha seu portador a ser de esquerda. Em 2010, um grande ruído em torno da especulação sobre o longo alelo DRD4 chegou mesmo a motivar o anúncio da criação de um "genopolitics movement" (movimento genopolítico). Só que, além do estudo de origem não ter sido bem entendido pelos que de imediato soltaram fogos, o que se confirmou é que nessa, como em inúmeras outras investigações, continua dificílimo identificar o quanto um fenômeno hereditário pode ter de genético, de epigenético, de comportamental ou mesmo de "simbólico" (memes).

Por mais que venha a ser difícil superar esse obstáculo, as evidências científicas já acumuladas são suficientes para indicar que a contradição entre esquerda e direita continuará tão significativa quanto sempre foi. É bem provável que só venha a desaparecer junto com a extinção da espécie humana.

A principal implicação prática dessa constatação aponta para a necessidade objetiva de que a coexistência entre os dois polos possa trazer o máximo de benefícios para a sociedade, em vez de prejudicá-la. E, para começar, algo assim só poderá ocorrer se as pessoas de esquerda e de direita perceberem que jamais poderão se ver livres dos que consideram seus adversários, quando não inimigos. O principal, portanto, é que petralhas, coxinhas e centristas entendam que formam o sistema trifásico da mesma corrente alternada.

Não se trata de pedir que escondam, disfarcem ou amenizem suas convicções. Muito menos que tentem se colocar no lugar do outro com o intuito de tentar compreendê-lo. Apenas que saibam que a humanidade experimentou essa contradição nos 12 milênios do Holoceno, por mais que muitos imaginem que ela seja apenas política, e que só tenha surgido há pouco mais de dois séculos, com a Revolução Francesa. E não há indícios de que isso mude, mesmo quando cair a ficha de que já se está no Antropoceno.

JOSÉ ELI DA VEIGA, 68, é professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP e mantém o site zeeli.pro.br


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