Folha de S. Paulo


Arquivo aberto: a graça da mulher de Mandela

Durante Grande parte de minha vida, acompanhei com interesse a trajetória e a obra do Prêmio Nobel da Paz Nelson Rolihlahla Mandela, o Madiba (1918-2013), como ficou popular e mundialmente conhecido o mais célebre cidadão sul-africano.

Li e reli avidamente todas as informações que pude acessar sobre sua luta em prol da libertação da África do Sul e sobre o combate sem trégua para extinguir o regime do apartheid, que segregou os negros dos brancos naquele país por mais de 40 anos –de 1948 ao começo da década de 1990.

Arquivo Pessoal
José Vicente e Graça Machel, viúva de Mandela, durante cerimônia na Sala São Paulo
José Vicente e Graça Machel, viúva de Mandela, durante cerimônia na Sala São Paulo

Fiquei impressionado com sua oratória e extremamente tocado pelo vigor dos seus discursos convocando os negros sul-africanos a resistir e a lutar contra o arbítrio e a opressão do regime.

A sabedoria e a profundidade dos argumentos de defesa de Mandela em seu julgamento (que resultaria em seu encarceramento por quase 30 anos) me embeveceram, assim como a demonstração de dignidade e grandiosidade de caráter dada por ele ao permanecer durante todo o júri com a cabeça erguida, a um só tempo altivo e inexpugnável.

Mandela afirmava que o ódio racial era artificial e intencionado e que o homem, em seu extraordinário mistério e complexidade, era vocacionado para o amor, a solidariedade e a compaixão em relação a seus pares; que se ele houvesse aprendido a odiar, também poderia ser ensinado a amar; que o amor conduzia suas ações e pensamentos e que, no fim, o amor venceria.

Por amor ao próximo, Mandela convidou para sua posse os carcereiros que guardaram seu cativeiro por quase três décadas.

A responsabilidade do estadista que o destino lhe reservou ser e o amor aos princípios levaram Mandela a entregar o poder depois de seu primeiro mandato.

O amor furtivo, atribulado e inconsequente que lhe deu as costas e o separou de sua esposa e companheira de lutas Winnie sorriu e o acolheu quando colocou na sua frente Graça Machel.

A estonteante e delicada beleza, a fibra, a altivez, a coragem, o sentido de luta e justiça e o amor incondicionado da grande líder e personalidade moçambicana seguramente ajudaram a curar e cicatrizar suas feridas, aliviaram a miríade de angústias e, inexoravelmente, permitiram a Mandela vivenciar e receber em dobro aquele amor que tanto deu a todos.

Foram o desprendimento, a entrega e o sentido de relevância histórica que costuraram o encontro e a ventura dessa dupla. Mais adiante, foram a generosidade e os mais altos sentimentos de nobreza que moveram os passos e os sentimentos de Graça e permitiram que, juntos, escrevessem uma bela história de amor.

Uma vez, quando lhe perguntaram sobre a importância de Graça em sua vida, Mandela respondeu que a doçura dela o havia fortalecido, libertado; que o amor de Graça o havia salvado e devolvido a ele a alegria de viver.

A cada vez que via o presidente Mandela e Graça Machel de mãos dadas, eu ficava emocionado. Tal cena sintetizava para mim a trajetória de vida e luta de Mandela: por amor e com ele é possível remover montanhas e construir uma nova história.

Chorei com o mundo quando Madiba se foi. Venerei Mandela e me apaixonei por essa fantástica mulher.

Jurei para mim mesmo que, se um dia tivesse a sorte de estar diante dessa figura, eu lhe contaria meus "segredos", falaria de meus sentimentos e pediria um abraço de gratidão por tudo o que ela significou para a história dos negros sul-africanos, para a vida de Nelson Mandela e, por que não, para a minha própria.

Os céus não demorariam a conspirar em meu favor. Um ano depois da morte de Madiba, Graça ouvia em silêncio minhas confissões, no interior da limusine que nos conduzia até a Sala São Paulo, palco nobre da cultura paulistana, onde ela seria premiada com o troféu Raça Negra.

Após descer da limusine, Graça Machel, com voz e olhar terno, perguntou se eu poderia pegar na sua mão e conduzi-la ao salão. Antes que eu respondesse, pegou a minha mão. Instantaneamente, meu coração gelou.
De mãos dadas entramos salão adentro. Entre a honra e a emoção, nesse dia quase morri.

JOSÉ VICENTE, 57, é reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares.


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