Folha de S. Paulo


Músicos da nova cena paulistana têm de atuar como empresários da canção

RESUMO A partir de livro que surgiu como dissertação de mestrado, o texto destrincha os traços da atual cena musical paulistana. Marcada pelo crepúsculo das grandes gravadoras e pela interação com o público via internet, a nova geração responde não só pelo campo criativo de sua carreira como também pelo logístico.

Everton Ballardin/Divulgação
A partir da esq., Rodrigo Campos, Kiko Dinucci, Marcelo Cabral e Romulo Fróes, integrantes do Passo Torto
A partir da esq., Rodrigo Campos, Kiko Dinucci, Marcelo Cabral e Romulo Fróes, integrantes do Passo Torto

A quantas anda a música brasileira depois que a grande indústria fonográfica perdeu a prerrogativa de orientar, direta ou indiretamente, as formas de produção e difusão, sobretudo de música gravada?

Thiago Galletta explora uma das faces desse grande tema, trazendo para o foco o circuito independente em "Cena Musical Paulistana dos Anos 2010" [Annablume, 298 págs., R$ 69], livro concebido como dissertação de mestrado em sociologia.

O substrato que lhe serve de âncora é justamente o crescimento da referida cena, ratificado pelo aumento da oferta de música gravada, pela ampliação das apresentações ao vivo de um grupo cada vez mais diversificado de artistas e pela intensificação do fluxo de informação sobre música em meios variados, sobretudo na internet.

O exame detalhado desses elementos em várias perspectivas resultou em análise substanciosa e instigante sobre o contexto musical brasileiro que surge a partir da incorporação das tecnologias digitais. O terreno explorado é intrincado e movediço. Para enfrentá-lo, além de fontes bibliográficas e de imprensa, Galletta mobiliza repertório de entrevistas com músicos, produtores e jornalistas e conhecimentos adquiridos em sua atuação como radialista, produtor e DJ. Os excertos de entrevistas trazem precioso subsídio ao estudo.

Abre o caminho para a análise uma oportuna retrospectiva dos sistemas que aproximaram a música da internet, no intervalo de 1995 a 2015. Busca-se compreender a maneira como o desenvolvimento de tais aparatos foi influenciando e alterando a dinâmica do trabalho dos músicos, as formas de recepção do material musical e de interação entre artistas e público –cada vez mais direta, sem os intermediários tradicionais (rádio, TV, "jabá"), mas com a mediação decisiva das redes sociais.

A partir de fonogramas gravados em estúdios caseiros e dos programas de compartilhamento digital de arquivos musicais, os artistas passaram não apenas a divulgar amplamente seus trabalhos mas também a incrementar uma rede de trocas de experiências e de criação musical via internet. A cena paulistana de que trata o estudo exemplifica o movimento, bem como essa forma colaborativa de produção apoiada em rede de afinidades musicais e pessoais.

Nela estaria também desenhada a atual ideia de independência no que diz respeito à dimensão fonográfica, à promoção de shows e à busca de financiamento (via editais de fomento e outros programas afins). Hoje, o termo "artista independente" surge quase esvaziado de seu teor histórico e relacional. Enquanto os "indies" dos anos 1980, por exemplo, batiam-se contra a lógica estabelecida (a das grandes gravadoras) –fosse por recusar seus procedimentos, fosse por querer na verdade integrá-la–, os de agora não têm um modelo hegemônico a lhes servir de antagonista.

Pouquíssimos artistas dessa geração buscam ou estabelecem formas de cooperação com as grandes gravadoras, que, por sua vez, abdicaram da tarefa de revelar promessas. Todos são independentes, e essa qualidade apontaria para um tipo de gênero cultural que confere identidade e prestígio.

Precioso para essa configuração é o cultivo, por todo artista, de um público interessado em novidades musicais que foi expandindo e afinando suas referências e gostos pela prática constante da pesquisa e do compartilhamento no meio digital. A interação direta artista-público forneceria, portanto, o combustível essencial ao sistema, que busca sua eficácia em nichos ou em segmentos específicos da música e do mercado.

TRANSBORDAMENTO

Dessas relações surge um outro termômetro de sucesso: o êxito passa a ser aferido não apenas a partir do número de downloads ou da presença em shows mas também em volume de curtidas, compartilhamentos e resenhas publicadas em blogs especializados em música.

A lista de artistas representativos da cena citados no livro é ampla e heterogênea. Para além daqueles que, em suas trajetórias, ajudaram a cunhar esses procedimentos, nela figuram nomes frequentemente referidos na grande imprensa, que se posicionariam ocasionalmente na fronteira com o mainstream, como Marcelo Jeneci, Emicida, Criolo e Tulipa Ruiz.

São músicos que aliam a produção independente a projetos de grandes empresas ou a parcerias com artistas constituídos no âmbito das grandes gravadoras. Esse transbordamento da cena independente revelaria a sua potência –e o indicador externo constitui dado precioso para a análise.

Vale lembrar que, sobretudo a partir dos anos 1980, tem sido possível observar regularmente a existência de espaço destinado às produções independentes nos cadernos de cultura dos grandes jornais brasileiros. Grupos expressivos da atual geração, como Metá Metá, Passo Torto e Cidadão Instigado, não só têm recebido atenção desses veículos, como têm surgido com frequência em rankings de melhores discos do ano.

Apesar das diferenças apontadas acima, é possível falar em identidade artística ou unidade estética quando se trata de definir essa geração? Seria essa, de fato, a tantas vezes anunciada "nova MPB"? Rock, MPB, samba, brega, afrobeat, bossa nova, ritmos regionais –desse caldo não emergiria um gênero musical específico?

Por mais que o diálogo com a MPB constitua a fonte comum –como referência, e não como reverência, segundo um dos entrevistados–, a alcunha "nova MPB" partiria de um referencial, de uma tradição da qual alguns nomes fazem questão de se descolar.

A solução tem sido a de adotar a definição ampla de música brasileira, que contempla vários estilos, mas que busca designar um lugar nos desdobramentos contemporâneos da música popular brasileira.
permanências O autor não mede esforços para nos mostrar o caráter de novidade do movimento que analisa. Esquadrinha discussões, aponta limites e dificuldades, mas o que seu empreendimento de fato visa é revelar a força, o ineditismo e os ganhos conquistados pela cena da música independente.

Efetivamente, o mundo da produção musical sofreu transformações surpreendentes e espetaculares nos últimos 20 anos, a partir da interação com as tecnologias digitais. O modo de produção de música gravada que orientou grandes corporações durante boa parte do século 20 caducou; o poderio daquelas sofreu fortes (e sucessivos) baques. O ritmo e a intensidade das mudanças dificultaram sua compreensão.

Além de contribuir para o entendimento desse novo cenário a partir de material original cuidadosamente compilado, o livro provoca a reflexão sobre permanências. A primeira, também referida por Rita Morelli na apresentação, diz respeito à manutenção da histórica centralidade de São Paulo, a cidade moderna que capitaliza talentos, recursos e condições estruturais para a gestação de movimentos musicais e culturais, como a nova cena independente paulistana. Tem sido assim "desde 1922!" [ano da célebre Semana de Arte Moderna], dizia Elis Regina a respeito do assunto, em entrevista citada.

O exame dessa centralidade busca decantar os elementos necessários ao estímulo e à promoção cultural que a cidade oferece. No entanto, o fato de que essa imensa ilha chamada São Paulo continue mantendo e atraindo para seus encantos talentos nativos e também os brotados em outras regiões mostra como se perpetua a profunda desigualdade existente no país, apesar da expansão verificada em várias cenas regionais. A experiência (tratada no livro) do Circuito Fora do Eixo ilustra a complexidade e os limites de iniciativas voltadas a romper esse cerco.

Mas nada parece ser tão emblemático das contradições existentes entre novidades e permanências do que a emergência da figura denominada por Galletta de "criador-empreendedor". A questão continua sendo a elementar: como sobreviver e viver sendo um músico independente? Como aproveitar as facilidades trazidas pelo novo "modus operandi" da produção musical para conseguir pagar as próprias contas?

O artista passa a gerir todos os aspectos da sua vida profissional, mesmo se contar com o trabalho de um produtor. Além das atividades artísticas propriamente ditas, precisa se dedicar à elaboração de projetos, contratação de shows, busca de financiamento e de oportunidades, conhecimento da operação das novas plataformas de difusão musical, atualização diária das páginas nas redes sociais e de e-mails –e, na maioria dos casos, dedicar-se a um outro emprego.

A inclusão no mercado do segmento que até então esteve nas bordas vem com cara de fim da divisão do trabalho, mas não coincide com o fim da instabilidade e do precário em termos de produção cultural. Essa autogestão, porém –desde os primeiros independentes, incluindo o hip-hop e o rap das periferias, até o atual movimento que alia música e questões de gênero–, pode resultar na autonomia de criação; é dela que emana a energia que, em ritmos e com resultados estéticos variados, tem feito a roda girar.

MARCIA TOSTA DIAS, 53, é professora do departamento de ciências sociais da Universidade Federal de São Paulo.


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