Folha de S. Paulo


Arquivo Aberto: Quando virei cantor de samba-enredo na hora do desfile

São Paulo, 1982

Eu tinha acabado de chegar de Guaratinguetá, onde fui o intérprete oficial da escola de samba Bafo da Onça. Choveu o desfile inteiro, o microfone me deu muito choque na boca, mas ganhamos o Carnaval de lá.

Missão cumprida, fui direto para a avenida Tiradentes, só pra tirar uma onda e curtir o desfile do Camisa Verde e Branco. Assim que eu pisei na avenida, um diretor do Camisa me abordou: "Oi, Zé Maria, tudo em paz, tudo certo?". Mais dois passos, outro diretor: "Zé, você tá bem?". Todo mundo com uma preocupação fora do normal comigo. Segui andando. Logo descobri que o Ataíde, conhecido como Taidão, cantor escolhido para defender o samba-enredo da escola naquele ano, tinha tido, digamos, um "pequeno desentendimento" com a Tropa de Choque.

Dei de cara com Taidão todo rasgado no chão, cercado de polícia. Com muito jeito –naquela época, ditadura, todo cuidado era pouco–, dei um toque no capitão: "Desculpe pela minha intromissão, sou do Camisa...". Ele me interrompeu no ato: "Você por acaso é diretor da escola?". Expliquei que eu era um simples integrante, nem falei que era compositor, bem na humilde.

Matuiti Mayezo/Folhapress
Componentes na apoteose no final do desfile da Avenida Tiradentes, em São Paulo, em 1982
Componentes na apoteose no final do desfile da Avenida Tiradentes, em São Paulo, em 1982

Acabei ganhando a simpatia do sujeito. E continuei: "É uma pena, esse aí é o nosso intérprete oficial". Meio desconfiado, ele me perguntou se não havia outro cantor para substituí-lo, pois dali o Taidão não ia sair fácil, não: "Quem mandou aprontar? Quem mandou soltar um rojão no pé da gente?".

Ao sentir que aquele papo não ia dar em nada, me despedi do capitão e dei área. Mal virei as costas, ele me chamou de canto: "Não tem outro cantor mesmo?". Sem vacilar, aleguei que aquele era o único, sim, e o policial resolveu mudar de ideia. "Libera o sem-vergonha!". Um soldado se abaixou e puxou Taidão pelo braço, para ajudá-lo a levantar, com aquela doçura típica da Tropa de Choque. Aí o camarada deu uma de valentão e xingou o soldado! Pronto, nada feito. Taidão permaneceu detido, e a escola no desespero.

Na ocasião, concorria o samba-enredo "Negros Maravilhosos (Mutuo Mundo Kitoko)", composto por Talismã. É uma obra-prima, e não é para menos. Talismã era um tipo raro: cantor, compositor, artista plástico e carnavalesco. Carioca, tinha chegado a São Paulo no final na década de 1960. Rapidamente, enturmou-se na Barra Funda e deu início a uma história linda com o ainda cordão Camisa Verde e Branco.

O samba-enredo "Há um Nome Gravado na História: 13 de Maio", de sua autoria, abriu a trajetória de vitórias, em 1968. Em seguida, compôs o hino do samba paulista, "Biografia do Samba", que deu o título ao cordão mais uma vez, em 1969. Quem ouve "Sonho Colorido de um Pintor", sucesso na voz de Tom Zé, talvez nem sonhe que Talismã é o autor desse samba, vencedor do Carnaval de 1971. É pouco? "Sou Verde e Branco", samba-de-quadra aclamado como o hino do Camisa, também é da pena desse nosso grande mestre. "Meu Sexto Sentido", composição dele gravada por Beth Carvalho em 1979, fez um baita sucesso! E por aí vai...

Eu tinha uma ligação muito grande com o Talismã, foi minha maior referência, uma figura inesquecível. Se hoje eu tenho senso crítico em relação às minhas composições, é por conta dele. Eu deveria ter prestado mais atenção ao que ele tentava me ensinar. Hoje estaria bem melhor, com certeza. Sou muito grato a ele.

Enfim, por essa proximidade, eu conhecia muito bem o samba-enredo "Negros Maravilhosos". Curiosamente, dias antes, Talismã tinha me dito que gostaria de me ver cantar o samba na avenida, queria até que eu o gravasse em estúdio. Só que nos meandros da escola acabaram escolhendo o Taidão. Depois do rolo com a Tropa de Choque, sobrou pra quem?

Para sorte minha e do Camisa Verde e Branco, a harmonia estava no meu tom! Hoje fico muito feliz de ter conseguido prestar essa homenagem ao Talismã; foi uma honra enorme cantar a obra dele na Tiradentes.

Quase no final do desfile, já nos últimos versos do samba, me aparece Taidão, em farrapos, estropiado, doido pra tomar meu microfone. Ah, aí já era tarde demais!

ZÉ MARIA, 69, é cantor e compositor. Integra o Encontro das Velhas Guardas, que estreia o show "Talismã: Negro Maravilhoso!" na sexta (3), no Sesc Belenzinho.


Endereço da página: