Folha de S. Paulo


Economista diz que Estados Unidos trocaram ambição por comodismo

RESUMO O economista Tyler Cowen lança livro em que vê os EUA de hoje "sem inovação, sem produtividade, sem crescimento", na contramão da imagem de berço do "self-made man". Em entrevista, ele fala sobre a neocomplacência da América e tece previsões pessimistas sobre a política econômica de Trump.

Foto Bruno Santos - 16.mai.2016/Folhapress

"Os americanos estão cada vez mais parecidos com as classes altas do Sul e do Sudeste do Brasil. Trabalhamos menos, queremos mais tempo livre, não queremos sacrifícios, mudamos menos de casa ou de cidade, [vivemos] estacionados na zona de conforto", lamenta o economista Tyler Cowen, 54.

"É preocupante. Os EUA já foram o país dos inquietos e aventureiros, como descreveu Tocqueville. É difícil nascer inovação da pasmaceira, da falta de ambição."

Doutor em economia por Harvard e nome constante nas listas de economistas mais influentes do mundo (da revista "The Economist" à agência Bloomberg), Cowen já esteve várias vezes no Brasil –a provocação sobre o conforto inerte não é gratuita, portanto.

Sobre seu país, ele diz que o sucesso do Vale do Silício, onde funcionam as maiores empresas digitais americanas, disfarça o atual mal-estar da sociedade e sua falta de iniciativa. Ao sentenciar que boa parte dos EUA vive "sem inovação, sem produtividade, sem crescimento", Cowen tenta explicar o país que elegeu Trump no livro que lança no mês que vem, "The Complacent Class" [St. Martin's Press, 256 págs., R$ 89,48, R$ 47,49 em e-book] (a classe complacente).

"Os americanos são os novos complacentes. Querem que o governo, do democrata ao republicano, resolva seus problemas. Há regulações demais por parte do governo, mas há também uma mentalidade mais conformista."

Como em seus best-sellers anteriores, "The Great Stagnation" (a grande estagnação; Dutton) e "Average Is Over" (o mediano acabou; Dutton), Cowen fala não só de economia; história, cultura, religião e ciência comparecem igualmente.

Em conversa com a Folha, Cowen, que não vota há anos, faz previsões pessimistas sobre a economia dos anos Trump ("com o populismo em alta, o liberalismo vai se retrair aqui e na Europa, mas vai florescer na América Latina"). Se Trump mantiver suas promessas, aumentará a imigração ilegal para os EUA, prejudicará as empresas nacionais e fará estragos na política externa, "[setor] em que previsibilidade é um ativo". O economista também fala dos "fracassos intelectuais" de quem votou em Trump e Hillary Clinton, e da necessidade de mais educação financeira e tecnológica.

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A GRANDE DECEPÇÃO

Anos e anos de crescimento vagaroso, em diversas partes do país, o que eu chamo de "grande estagnação", elegeram Trump. Ele oferecia mudar tudo, abolir esse modelo, enquanto Hillary prometia continuar com mais do mesmo.

Mas nenhum desses empregos industriais sonhados pelo interior da América vai voltar aos EUA. Será uma grande decepção.

Trump não consegue ressuscitar a sorte das pessoas que votaram nele. O eleitor do interior do país vota na mudança, mas ele mesmo não muda. Várias pessoas de cidades paradas no tempo, de Estados que ficaram para trás, já deveriam ter se mudado há tempos para outras regiões do país atrás de empregos melhores. Mas seus pais e avós também estão ali; há os divorciados com guarda compartilhada dos filhos, as crianças. Então elas esperam que o governo resolva a decadência dessas regiões. E votam no Trump para o governo ajudá-los!

Não há programa de treinamento que possa empregar essas pessoas onde vivem. Empregos temos, estamos em uma era de pleno emprego nos EUA. O problema é a renda, os salários estão estagnados, especialmente nos empregos em que as pessoas insistem em ficar.

ERA DE INCERTEZA

Não compartilho da histeria nem do medo de muitos dos meus colegas sobre Trump, mas não sou nada otimista. O deficit público vai aumentar, porque Trump vai reduzir impostos, algo que o Partido Republicano sempre defendeu, e vai investir muito em infraestrutura, algo que Obama quis fazer e a que os republicanos eram contrários.

Agora vai ser a hora de os democratas criticarem o gasto. Trump quer despender US$ 1 trilhão, mas será forçado a gastar bem menos. Não sou apocalíptico, mas vai ser uma era de incerteza; onde eu mais temo é na política externa. A tendência dele de personalizar conflitos, de reagir mal a quem o critica, é muito perigosa. Em diplomacia e na seara das armas nucleares, previsibilidade é um ativo importante, do qual vamos sentir falta.

Dito isso, ele não mudará o país tanto quanto ameaça. A política moderna implica que você sempre prometa mais do que pode entregar. O Congresso vai impedir algumas maluquices. Não deve haver guerra comercial com a China. Os deputados representam distritos que perderiam muito se o comércio com os chineses fosse afetado. Nossos parlamentares respondem primeiro aos seus eleitores, não ao presidente.

BRASIL MAIS ADULTO

A troca de papéis é comum nas famílias. Sabe quando um irmão pequeno apronta e o outro fica quietinho? No dia seguinte, invertem os papéis. Os EUA vão passar este período se comportando mal, e é uma ótima oportunidade para países como México e Brasil esbanjarem maturidade. Podem selecionar o que de melhor os EUA têm para se inspirar, sem seguir tudo. Vão precisar se comportar mais e ir atrás de resultados. Mostrar o quanto evoluíram, que são mais adultos, para investidores e grandes empresas.

Os EUA viverão uma era de não dar exemplo ao mundo. Esse efeito já é nítido em relação à China. Aquele país vai ficar mais responsável e mais engajado em debates unilaterais a partir de agora. Claramente, no tema de mudança climática, a China vai ter que agir como o adulto na sala, lembrando os EUA de acordos já firmados.

IMIGRAÇÃO

Apesar das promessas em contrário, Trump parece querer um "boom" da entrada de ilegais. Ele defende um enorme programa de estímulo fiscal e construção de nova infraestrutura. Pontes, estradas, energia e até o muro na fronteira, que ele tanto quer. Tudo isso precisa de muita mão de obra. O setor da construção emprega muitos mexicanos sem documentos. Trump vai recorrer a empresas terceirizadas para fazer essas obras. Quem vai checar o status desses operários? Elas não vão mudar seu "modus operandi" da noite para o dia.

Os ilegais usam estradas, transporte público e eletricidade o tempo todo. Mas dificilmente têm acesso a um plano de saúde sob o Obamacare [lei federal que ampliou acesso a convênios]. Se Trump vai tirar dinheiro do Obamacare para gastar em obras, não os afeta.

Ao tratar o México como adversário, ameaçando revisar o Nafta (Tratado de Livre Comércio da América do Norte), você afugenta investimentos externos do México e cancela novas fábricas americanas por lá, o que prejudica os salários e os empregos disponíveis por aqui. Mais gente estará disposta a cruzar a fronteira graças à política de Trump.

ANTICOMÉRCIO

As últimas décadas foram as melhores da humanidade em toda a história. A pobreza extrema foi reduzida em quase todo o mundo, ao mesmo tempo em que a expectativa de vida e a renda subiram. Quem fala em desigualdade alta parece desconhecer a prosperidade recente da Ásia e até a melhoria em todos os indicadores africanos.

Uma ordem de comércio globalizado gerou boa parte desse processo. A China entrou na Organização Mundial do Comércio em 2001. Antes, Deng Xiaoping ensaiara o movimento ao se inspirar em Cingapura, símbolo de economia aberta. Os americanos se beneficiaram muito com as inovações e com os produtos que vêm da China, assim como as invenções americanas favoreceram os britânicos no século 19.

Sim, a China baixou alguns salários da classe média. Mas colocar tarifas contra produtos chineses afetaria os americanos mais pobres, que gastam fatia desproporcional de sua renda em vestuário e comida. Essa seria afetada por produtos e equipamentos chineses mais caros. Nossos mais pobres normalmente trabalham em serviços, não são os empregos deles que estão se mudando para outros países. A automação acaba com mais empregos do que a China.

A participação no comércio global, tão recente, teve um papel fundamental em transformar a América Latina: ela passou de região de autocratas a celeiro de democracias vigorosas.

Nunca é fácil fazer a opção por "um pouco menos" de comércio. Carecemos de acordos e tratados precisamente porque sempre haverá governos querendo "um pouco menos", e o resultado final será "muito menos" comércio.

Os economistas deveriam falar a verdade, sem simplificar demais. O livre comércio foi bem melhor do que pensávamos. O grande público nem sempre confia nos economistas. Mas tampouco nos políticos mais preparados ou nas melhores fontes de informação.

MÉXICO X EUA

Uma das maiores promessas de Trump é a de impedir que as empresas americanas trasladem linhas de produção para o México. Isso é pior do que protecionismo. Pode ser um passo maior para o controle de capitais e para a politização de decisões empresariais. Proibir que algumas fábricas ou linhas de montagem fechem provoca consequências sérias. Essas fábricas podem estar perdendo dinheiro ou até estar perto da falência. Proibir que fechem forçaria os EUA a manter fábricas com tecnologia ultrapassada, limitando o progresso e o avanço econômico.

Se uma lei é necessária para evitar que elas se mudem, é porque, de fato, produzir no México é mais lucrativo. Se as companhias americanas não podem ir para lá, as mexicanas, europeias e asiáticas poderão se beneficiar desses preços competitivos, nos deixando para trás. Se impedimos que capital americano seja investido no México, estamos beneficiando a China, com quem ele compete por essas fábricas de salários baixos.

LIBERALISMO

As perspectivas para o liberalismo clássico são desanimadoras. EUA e União Europeia estarão cultivando menos a liberdade nos próximos anos. A União Europeia não tem organização para resolver seus próprios problemas. Não consegue fazer a economia crescer, regular bancos transnacionais, solucionar a questão grega. É um ideal que está perdendo a luz.

Mas é na América Latina que vejo o liberalismo crescendo, comparativamente. A Argentina se livrou do estatismo da era Kirchner, e o socialismo da Venezuela está desmoronando. O Brasil ainda está uma bagunça, mas acho que, no final, vai acabar fazendo o certo, que é se abrir mais e permitir o crescimento de sua classe média de forma mais sustentável do que antes. Partes da economia e da produtividade do México já são modernas e vão continuar crescendo. Idem na Colômbia e no Peru.

OPOSTO DE KEYNES

Medir apenas o PIB não diz se o investimento do governo foi bom ou não. No curto prazo, o PIB pode subir, mas o que acontece a longo prazo? Muitos americanos produzem capital organizacional: estão criando planos de negócios, montando listas de clientes, planejando futuras fontes de renda, comuns nos setores de serviços. Os estímulos de governo, entretanto, são para resultados concretos, como estradas, pontes, gastos militares. Esse apoio pode retirar gente do capital organizacional. Numa economia próxima do pleno emprego, com PIB crescendo a 2,9% no último trimestre, não parece claro por que ele diz que vai gastar US$ 1 trilhão em infraestrutura.

Na teoria keynesiana, a política fiscal funciona se é usada nos momentos de baixa para deixar a conta ser paga nos tempos de bonança. Trump parece disposto a fazer o oposto: gastar bilhões quando o desemprego está muito baixo. A história recente diz que muitos países são forçados à austeridade precisamente quando não deveriam. Pacote de estímulo pode significar uma contração maior no futuro.

FRACASSO

Esta eleição [presidencial americana] marca o fracasso intelectual das pessoas mais inteligentes e educadas do país. Elas não conseguem mais se comunicar com gente de fora da sua bolha. O eleitorado republicano mostrou ser mais diverso do que o democrata. A maioria dos votos a mais de Hillary veio de dois Estados, Califórnia e Nova York, e de gente muito parecida. Pode ser mais diversa na raça e no gênero, mas só. Há mais mulheres, gays, negros e latinos democratas, mas todos parecidíssimos no pensamento.

Os pais fundadores do país criaram o Colégio Eleitoral para garantir uma diversidade geográfica. Se mais regiões vetam uma pessoa, ela não pode presidir. Corretamente ou não, mais americanos acharam que a diversidade racial e étnica não deveria ser levada tão em conta. Tinham outras prioridades. Mas não vejo uma releitura esperta da nossa esquerda; a polarização vai piorar. Aumentou o desprezo a quem votou em Trump –o "eles contra nós"–, em vez de haver uma tentativa de entendê-los.

CIÊNCIA POP

A cultura pop nem de perto é [tão] pró-ciência [quanto poderia ser]. A ciência deveria gozar de um status muito maior entre nós para aumentar a taxa de inovação. Na esfera privada, as pessoas deveriam valorizar mais a ciência. Não custa nada; é só acreditar que a ciência faz bem. Os jovens precisam de modelos que os inspirem. Por isso, as séries de TV são importantes. "Star Trek" fez a ciência ser cool para muita gente. O presidente Obama realmente fez um belo trabalho em ser pró-ciência, em falar de avanços científicos, convidar crianças para mostrar suas invenções na Casa Branca. É o poder do exemplo.

Historicamente, a América não tem sido constantemente pró-ciência, mas nós colocamos o primeiro homem na Lua, criamos tantas e tantas inovações entre 1870 e 1930. Temos de voltar a valorizá-la.

ZONA DE CONFORTO

Desde Alexis de Tocqueville, a inquietação foi um traço da cultura americana. Foi o que nos empurrou, desafiou, provocou inovações. Os americanos de hoje estão abandonando essa tradição. Queremos espaços seguros. Estamos nos empenhando para evitar mudanças. Mudamos de casa ou de Estado menos vezes do que antes, casamos com gente muito parecida conosco, temos menos filhos, nos relacionamos com gente que pensa como nós. Os algoritmos das redes sociais escolhem nossas músicas, paqueras, o que lemos, o que compartilhamos. Tudo é previsível.

Essa cultura de conexões on-line tem suas vantagens, nos traz conforto. Mas há vários efeitos colaterais indesejados, como o aumento da desigualdade e da segregação, e a diminuição dos incentivos para inovar e criar. Estamos envelhecendo, ficando parecidos com a Europa Ocidental ou com as elites do Sul e do Sudeste do Brasil. Isso é preocupante.

VOLTA DA RELIGIÃO

A vitória de Trump lançou luz sobre o atraso econômico no Meio-Oeste e na Appalachia, regiões que ajudaram a elegê-lo no Colégio Eleitoral. Há duas perguntas que se confundem: "como ajudamos essas áreas do país?" e "como podemos fazer com que votem de modo diferente?". Mas a Louisiana e o Mississippi, dois dos Estados mais pobres, não chamam atenção, pois sempre votaram nos republicanos. No fim das contas, essas regiões não são tão mais pobres que as demais, tendo entre 12% e 15% da população na pobreza. Os eleitores de menor renda, dos imigrantes aos negros, votaram em Hillary. Os pobres não conseguiriam eleger Trump.

O verdadeiro mal-estar é sobretudo cultural, ligado a estilos de vida medíocres, "sem futuro", que contrastam com as expectativas anteriores. Incluam-se aí o abuso de álcool e drogas e a política disfuncional da identidade branca no país.

Não há uma solução de cima para baixo para curar essa sensação, mas certamente torço por um novo florescimento de religiões mais restritivas, que proíbam o uso de drogas, no interior do país. Sem abuso de substâncias e com taxas menores de divórcio, os problemas socioeconômicos dessas regiões seriam menos severos. Em Utah, onde há muitos mórmons, essas questões são menores, e a classe média é mais saudável.

Pessoalmente, não sou religioso, mas vejo como uma vantagem. Entretanto, as classes intelectuais americanas, majoritariamente seculares, dificilmente defenderiam a volta da religião. Primeiro, porque não apoiam a preferência política dos mais religiosos, que tendem a votar mais nos republicanos do que nos democratas. Em segundo lugar, direcionar o foco para a religião poderia tirar a atenção das respostas favoritas dos nossos progressistas a problemas sociais e econômicos: redistribuição de renda e investimentos em infraestrutura. Iowa e Ohio precisam de mais infraestrutura do que já possuem, é sério?

Intelectuais e a mídia poderiam contribuir para passar uma imagem um pouco mais positiva da religião. Vejo muita gente boa promovendo uma retórica de empatia, mas com muita condescendência nos assuntos importantes. Não há vontade, em nenhum dos lados do debate, de ouvir visões diferentes sobre raça, imigração ou aborto.

ENTENDER A TECNOLOGIA

A humanidade precisa saber entender melhor a tecnologia. As pessoas não compreendiam de fato o que significava Hillary ter um servidor privado para seus e-mails. Os e-mails roubados de seu chefe de campanha, John Podesta, e divulgados pelo WikiLeaks mostram que até gente muito bem informada não sabe o que se pode ou não escrever em um e-mail. Os processos contra a Trump University mostram que os alunos não sabiam o que esperar de uma universidade digital. A internet, com sua garantia de anonimato, contribuiu para o crescimento do movimento racista alt-right [direita alternativa].

A vitória de Trump aponta para um perigoso desequilíbrio entre popularidade e capacidade. No passado, as chances eleitorais de alguém dependiam de organização e campanha. Com as redes sociais, os candidatos podem ir muito além de sua capacidade política. Mas até meus amigos já perderam os bons modos, olhando para a tela o tempo inteiro em reuniões sociais. Não sabemos regular nem a nossa vida. É analfabetismo.

EDUCAÇÃO FINANCEIRA

Tenho um blog sobre economia há 15 anos, em que posto textos diariamente, o Marginal Revolution. Sempre quis ampliar o debate econômico para os temas do mundo real, e é preciso que mais gente entenda, pelo menos, os princípios básicos. No Mercatus Center, que dirijo, na Universidade George Mason [em um subúrbio de Washington, no Estado da Virginia], entrevisto diversos intelectuais para falar de cultura e economia, de Jeffrey Sachs a Peter Thiel, de Steven Pinker a Camille Paglia.

Criei com outros amigos economistas, em 2012, a Marginal Revolution University. O objetivo é oferecer diversos cursos de economia online, tratando dos princípios da micro e da macroeconomias e cobrindo desde o mercado de trabalho até a economia chinesa, de impostos a subsídios. Para leigos e para professores.

Gosto de explicar como a economia afeta o seu dia a dia, e como você pode usar conceitos econômicos para tomar decisões. Tudo gratuito, com legendas, e tentando expandir para o máximo possível de idiomas. Não quero ganhar dinheiro com isso. Sinto que é minha missão de vida.

RAUL JUSTE LORES, 40, é repórter especial da Folha.

SÉRGIO SISTER, 68, é artista plástico.


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