Folha de S. Paulo


Obama frustra promessa de igualdade entre brancos e negros nos EUA

RESUMO A era Obama foi incapaz de mudar as relações raciais nos Estados Unidos, que vivem o engodo da diversidade, termo que camufla a violência do racismo. Em tempos de movimentos como o Black Lives Matter, autores escrevem, em diferentes registros, sobre a farsa da América que integra brancos e negros.

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"Não lamente, organize. Não se desespere, crie." Essa foi a mensagem escrita pelo jornalista Jeff Chang na noite da contagem dos votos que iria confirmar a eleição de Donald Trump como futuro presidente americano.

Publicada no Twitter e rapidamente retransmitida por seguidores, faz um aceno a fase parecida na história dos EUA: "não lamente, organize!" eram as palavras de ordem da campanha de um sindicato de trabalhadores na era Reagan (1981-89), outro republicano que recebia as chaves da Casa Branca de um democrata e figura tão midiática quanto o magnata nova-iorquino.

"Precisamos contar com a força criadora dos artistas para continuar a acreditar que a mudança é possível", diz por e-mail Chang, também diretor do Instituto para a Diversidade nas Artes, da Universidade Stanford, na Califórnia. Ele está lançando seu terceiro livro, "We Gon' Be Alright: Notes on Race and Resegregation" (Picador; ficaremos bem: apontamentos sobre raça e ressegregação). A obra trata da amplitude do racismo na sociedade americana sob o ponto de vista de um dos intelectuais mais ativos do movimento multiculturalista ali.

Alex Wong/Getty Images/AFP
WASHINGTON, DC - JANUARY 18: Members of Black Lives Matter DMV participate in the annual Martin Luther King Holiday Peace Walk and Parade January 18, 2016 in Washington, DC. The nation observes the life and legacy of Martin Luther King Jr. today. Alex Wong/Getty Images/AFP == FOR NEWSPAPERS, INTERNET, TELCOS & TELEVISION USE ONLY ==
Membros do Black Lives Matter em caminhada no Dia de Martin Luther King, em Washington

Os sete ensaios funcionam como peças argumentativas independentes e misturam reportagem, análise e opinião. Ao final, fica claro que, no que se refere a relações raciais, quase nada mudou na era Obama. Por esse raciocínio, o triunfo de Trump seria mera continuação lógica dos mandatos do primeiro presidente negro da América.

Chang destrincha as mortes de negros pela polícia, a posterior organização de protestos pelo país, o nascimento do movimento #BlackLivesMatter (vidas negras importam), o declínio e a subversão do conceito de diversidade, a ressegregação das escolas públicas e a gentrificação –tudo tendo como pano de fundo o que ele chama de "guerras culturais" que engendram o racismo. Além disso, assina um texto autobiográfico para explicar por que, num país onde todos são e estão separados em rótulos identitários, apesar do mito da integração racial, ele se sente obrigado a falar de si como "asian-american" (americano de origem asiática).

"Extremistas da guerra cultural regam as ervas daninhas da insegurança para que as do ódio cresçam. E fazem isso agarrando-se ao temor dos brancos sobre o futuro, combinando a insegurança econômica e o eclipse demográfico [termo decalcado de projeções segundo as quais, em 2042, os EUA serão majoritariamente não-brancos]".

Para o jornalista, que não acredita no uso do termo diversidade (segundo sua leitura, apenas uma ferramenta para nos desviar do verdadeiro debate sobre racismo), só a juventude poderá apresentar novas propostas. É por isso que a obra é dedicada aos "jovens que não abaixam suas cabeças".

Chang considera o movimento #BlackLivesMatter, nascido em uma mensagem de Facebook da artista Alicia Garza, uma dessas novidades. Ele sustenta que, na contramão da mobilização pela ampliação dos direitos civis dos anos 1960, a articulação de agora tem caráter ecumênico, inclui quem ficou à margem décadas atrás.

Os assassinatos de Trayvon Martin, Michael Brown, Eric Garner e Tamir Rice deram origem ao movimento mas também a outras demonstrações públicas de indignação. Obama disse em 2013 que Trayvon poderia ser seu filho –e depois teve de mudar o tom, quase como um pedido de desculpas à reação da opinião branca.

CORPO NEGRO

Mais contundente, no entanto, foi a resposta de Ta-Nehisi Coates, repórter e colunista da revista "The Atlantic". Em 2015, o jornalista lançou "Entre o Mundo e Eu" (Objetiva), carta a seu filho adolescente Samory Touré sobre a fragilidade do corpo negro nos Estados Unidos.

"Não sei o que significa crescer com um presidente negro, redes sociais, uma mídia onipresente e mulheres negras por toda parte com seu cabelo natural. O que sei é que quando eles soltaram o homem que matou Michael Brown, você disse: 'Vou indo'. E isso me toca porque, apesar de toda a diferença entre nossos mundos, na sua idade meu sentimento foi exatamente o mesmo", escreve Coates na primeira parte do livro.

Em "Entre o Mundo e Eu", Coates fala em "corpo negro" justamente para deixar todas as questões subjetivas do racismo fora do livro. A questão é objetiva: racismo mata –como escreve Jeff Chang na introdução de "We Gon' Be Alright".

"Nosso léxico inteiro –relações interraciais, discriminação, justiça racial, privilégio branco e mesmo supremacia branca– serve apenas para obscurecer a experiência visceral do racismo, o fato de que ele pode destruir cérebros, impedir de respirar, rasgar músculos, extirpar órgãos, quebrar ossos e arrancar dentes."

O conteúdo que Coates oferece ao filho não é nem um pouco otimista. Ele desfia todos os seus medos e as ameaças que vê pairar sobre a vida de um adolescente negro americano nos dias de hoje. Na segunda parte do livro, relembra a história de seu colega de universidade, Prince Jones, morto pela polícia em 2000.

Para Coates, a única razão de ser da conversa publicada em livro é ajudar seu filho a achar uma maneira "de viver livre em um corpo negro". Ele não espera que as coisas mudem tão cedo; a realidade não consegue desfazer a ilusão que muitos ainda nutrem sobre a existência de uma integração entre brancos e negros na América.

SARCASMO

O escritor Paul Beatty, radicado em Nova York, é outro desiludido, mas escolheu a ficção para falar de um país sempre desunido. Com seu sexto livro, "The Sellout" (ed. Farrar, Straus and Giroux; o vendido, em tradução livre), foi o primeiro americano a ganhar o prêmio internacional de língua inglesa Man Booker. Chamado por alguns críticos de "um romance de humor", o tomo é escrito com um sarcasmo ácido e enfileira sem eufemismos estereótipos do racismo e das divisões entre brancos e negros nos EUA. Impossível evitar o sorriso amarelo.

"Pode ser difícil de acreditar, vindo de um homem negro, mas eu nunca roubei." Assim começa a história de Me (seu nome completo nunca é dito), que será o narrador de seu próprio julgamento na mais alta corte americana.

Tudo se passa na periferia de Los Angeles, onde o protagonista vive de cultivar melancias e maconha. Quando a gentrificação faz seu bairro desaparecer, ele sente ir com ele sua identidade. De uma forma quase surrealista, Me acaba aceitando um desempregado negro como seu escravo e vira um defensor da separação dos estudantes por raça. As acusações de escravizar uma pessoa e de defender a volta da segregação nas escolas, num período em que o termo diversidade é brandido pelo senso comum, o levarão ao banco dos réus da Suprema Corte americana.

Beatty usa muitas vezes e sem pedir desculpas o insulto "nigger" –e é questionado por isso. Em uma entrevista à revista "Rolling Stone", diz que "muitas vezes o que é mais inapropriado é o mais necessário". Beatty conta que sua primeira experiência direta com o racismo se deu quando, no segundo ano primário, foi chamado de "nigger". Na hora de escrever "The Sellout", avaliou que não poderia deixar esse termo para trás.

É assim que se lê o romance: como uma conversa aberta sobre racismo escrita com o sarcasmo amargo de quem vive seu peso todos os dias.

A cena final da história descreve, sem muitos detalhes, o que acontece no tal bairro gentrificado um dia depois da posse de um homem negro (uma clara referência a Barack Obama). Um diálogo entre um personagem e Me, o narrador, gira em torno do fato de a América ter finalmente quitado sua dívida com a população negra. Me pergunta então: "E os índios? E os chineses, os japoneses, os mexicanos?".

Cada um com seu formato, ensaio ou ficção, os três autores compartilham uma visão: não sobrou, para o início da era Trump, nenhuma ilusão sobre grandes mudanças na sociedade no que se refere a racismo e integração de brancos e negros nos EUA.

IZABELA MOI, 46, é jornalista.


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