Folha de S. Paulo


Peça remonta encontro entre Susan Sontag e John Berger; leia trecho

SOBRE O TEXTO Imagine o encontro, para uma conversa na TV, entre duas das mentes mais brilhantes da segunda metade do século 20: a ensaísta e crítica norte-americana Susan Sontag e o crítico e escritor inglês John Berger. Deve-se o feito a um episódio de 1983 do programa "Voices", do britânico Channel 4. O trecho abaixo faz parte da peça "Sontag/Berger", ainda inédita, que remonta o encontro no palco por meio de um teatro "verbatim", fiel à transcrição da conversa.

Danilo Verpa/Folhapress
SAO PAULO - SP - 12.01.2017 - Obra de Zed Nesti para Ilustrissima. (Foto: Danilo Verpa/Folhapress, ILUSTRISSIMA)

PERSONAGENS

SUSAN SONTAG, 50 anos. Cardigan púrpura escuro, camisa castanha clara listrada de vinho, calça preta, botas marrons. Pequeno microfone redondo na camisa.

JOHN BERGER, 57 anos. Cabelo parcialmente grisalho. Jaqueta preta, camisa branca com gola chinesa, calça bege, sapatos marrons. Pequeno microfone redondo na lapela do paletó.

CENÁRIO

Londres, 1983. Um cenário num estúdio de televisão. Tapeçarias em estilo persa nas paredes, chão de compensado bege claro. Uma grande mesa circular de madeira, sobre a qual repousam dois copos, uma jarra d'água, um grande cinzeiro redondo. Duas cadeiras de estofado bege claro, frontalmente opostas, em horizontal em relação ao palco.

(As luzes se acendem enquanto ouvimos a trilha de abertura do programa "Voices" do Channel 4 britânico.)

JOHN BERGER (Voltando-se para o público) Boa noite. Nesta noite, "Vozes" é um pouco diferente, pois somos apenas dois. Susan Sontag e eu, John Berger. Acho que Susan e eu temos um monte de coisas em comum. Ambos escrevemos ensaios sobre literatura, sobre ideias. Nós dois temos trabalhado em cinema. Susan acaba de voltar de Roma, onde está fazendo um filme baseado em um de seus contos. Eu tenho escrito roteiros. Ambos, de tempos em tempos, temos escrito muito sobre fotografia. Sobre a imagem visual fotográfica. Por fim, e talvez o mais importante nesta noite, ambos escrevemos ficção. Romances e contos. Nesta noite vamos trocar opiniões e experiências sobre esta atividade, de certa maneira realmente misteriosa. A atividade de contar histórias.

(...)

BERGER Como uma história começa para você?

SUSAN SONTAG A motivação para um ensaio é certamente alguma coisa que eu notei ou pensei ou é um conjunto de problemas que gerou outro conjunto de problemas e outro e outro e outro e então eu descubro um pretexto para falar sobre estes problemas numa obra de arte específica ou numa situação ou num ideal, o que for. Quando estou escrevendo um ensaio, me pergunto o tempo todo: "É verdade o que estou dizendo? É assim mesmo?"

BERGER Sim, concordo, sim.

SONTAG Acho que, quando estou escrevendo ficção, há sempre um sentido de responsabilidade, pois acho que tanto eu como você somos do tipo de gente que sente e assume responsabilidade com grande avidez. Mas não é quanto à mesma ideia de verdade, exceto num sentido muito definitivo e quase tautológico. Acho que quando sou mobilizada a escrever uma história, não é pelo fato de eu ter ouvido uma história, porque, como todo mundo, eu ouço milhares de histórias. É porque eu ouço linguagem na minha cabeça. Eu ouço uma frase.

(...)

BERGER É interessante isso, e nós muitas vezes tratamos disso, pois talvez nós nos alinhemos com algo muito parecido, mas é um processo ao inverso. Para mim, nunca existe esta voz no começo. Há uma enorme dificuldade de enxergar aquela situação, aquela pessoa, de segui-las...

SONTAG Eu não vejo, escuto.

BERGER Eu vejo.

SONTAG Talvez seja por isso que eu goste de fazer filmes, pois eu não vejo. Eu apenas escuto quando escrevo e consequentemente eu quero muito ver e isso eu gosto de fazer com imagens, ao invés de com linguagem.

BERGER E quando você está realmente lá, realmente lá, que provavelmente é depois de um tempo concreto de escrita, na altura de dois terços, não necessariamente de dois terços do texto, mas dois terços do tempo de escrita, meses ou anos, então de repente a voz vem. Então eu apenas escrevo, mas isso vem depois que a situação ou a pessoa foi estabelecida. Não antes.

SONTAG Não, para mim, a pessoa emerge da linguagem. Sinto...

BERGER Para mim, a linguagem vem da pessoa.

SONTAG Está muito claro de nossa conversa que eu sou realmente leal a certos pressupostos modernistas sobre arte, sobre literatura, que acho que você questiona e abandonou. Penso numa obra inicial de sua ficção, como o romance "G.", na qual você está então fazendo algo que é próximo do que eu continuo a fazer como escritora de ficção. As histórias que você tem escrito sobre a vida no campo são, acho, não sei se você sente isso, em uma forma muito diferente ou em um modelo diferente.

BERGER O tema é tão diferente, acho. É verdade.

SONTAG Você não mudou, John? Você, você mesmo, não mudou?

BERGER Eu não sei. Eu tive de reaprender a escrever, isto é verdade, pois a experiência dos desamparados ou dos camponeses é tão diferente da experiência dos privilegiados, e "G." é um livro sobre estes.

SONTAG Você considera a si mesmo como um repórter de sua experiência? Eu não sinto que seja uma repórter de minha experiência de maneira nenhuma.

BERGER Não, não, pois acredito totalmente na experiência sendo compartilhada. Acredito que a imaginação é exatamente isso. Começa muito cedo na infância. Começa com a identificação de uma criança com um brinquedo ou com um animal. Essa capacidade de empatia é, me parece, o primeiro fruto daquela criação social que é a imaginação. Em geral, hoje, há uma espécie de falta de coragem na ficção. O que quero dizer com isso?

SONTAG Sim, o que você quer dizer com isso?

BERGER Bem, quero dizer que a maioria dos romances provavelmente são hoje na verdade autobiografias disfarçadas. Por outro lado, as pessoas dizem: "O que lhe dá o direito de escrever sobre camponeses? Você não é um camponês. O que dá a você o direito de escrever sobre um homem? Você não é um homem". Ou vice-versa. Estas questões são recorrentes e a crise de coragem, ou a falta de coragem, é esta: não é possível escrever sobre algo que alguém não viveu, ou não viu. Eu não acredito nisso.

AMIR LABAKI, 53, é cineasta, crítico de cinema e fundador do festival de documentários É Tudo Verdade.

ZED NESTI, 47, é artista plástico.


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