Folha de S. Paulo


Leia trechos do diário do escritor Ricardo Piglia, morto nesta sexta

Ricardo Piglia, um dos mais importantes escritores contemporâneos da Argentina, morreu nesta sexta-feira (6), em Buenos Aires, aos 75 anos.

Ao longo de 2011, a Ilustríssima publicou com exclusividade partes do diário de Piglia. No trecho abaixo, o autor fala de seus últimos dias como professor em Princeton e sua relação com os alunos.

Jorge Silva/Reuters
Literatura: o escritor e crítico argentino Ricardo Piglia, durante evento, em que recebeu o Prémio Internacional Gallegos Novel Romulo por seu livro
O escritor e crítico argentino Ricardo Piglia, morto nesta sexta-feira (6)

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NOTAS NUM DIÁRIO

SEGUNDA

Só consigo fazer uma coisa de cada vez. Lento. Mexo-me pouco. Minha vida se organiza em séries descontínuas. Há uma persistência invisível dos hábitos. A série dos bares, das leituras, da política, do dinheiro, do amor, da música. Certas imagens ""uma luz na janela no meio da noite; a cidade ao amanhecer"" se repetem ao longo dos anos.

Queria editar este diário em sequências que seguissem as séries: todas as vezes que me encontrei com meus amigos num bar, todas as vezes que fui visitar a minha mãe. Assim seria possível alterar a causalidade cronológica. Não uma situação depois da outra, mas uma situação igual à outra. Efeito irônico da repetição.

Estas ideias aparecem quando estou dando minhas últimas aulas em Princeton.

Um seminário sobre "políticas do romance". Outra série possível: todas as vezes que entrei para dar aula na sala B-6-M do edifício Firestone, nesses 14 anos, e o que aconteceu depois.

QUARTA

Com Arcadio Díaz Quiñones, visitamos a exposição sobre a Nova York latina no Museu do Bairro. As relações da América Latina com NY a partir do século 17.

Arcadio foi um dos primeiros a chamar a atenção para a importância da situação extralocal na diáspora portorriquenha e na história da cidade. Assim como Juan Goytisolo destacou a presença árabe nas galerias e nos bairros de Paris, Arcadio registrou as marcas da cultura latina em Nova York 'e vice-versa', o modo como a migração para os EUA definiu a prática artística e a tradição nacional de Porto Rico. Seus livros "La Memória Rota" (a memória estropiada) e "El Arte de Bregar" (a arte de "bregar") (1) fundaram uma nova noção de cultura latino-americana.

Numa esquina do bairro, vemos as crianças saindo da escola, os pais vieram buscá-las. Crianças negras, latinas, coreanas, árabes não andam soltas pela cidade. Uma mulher coberta com véu vai com a filha de cinco ou seis anos, também de véu; esperam o sinal verde, a menina agarra com a mão a túnica da mãe.

QUINTA

Continua a discussão sobre o caso Antonio Calvo (2). Boas intervenções de Paul Firbas e de Luis Othoniel Rosa-Rodríguez. Defendem a necessidade de politizar a questão. Por que os sindicatos dos professores não funcionam, por que não há centro acadêmico? Os conflitos se tornam pessoais, e não há a quem recorrer em caso de demissão.

Em entrevista, Ricardo Piglia fala sobre seu último livro lançado no Brasil, "O Caminho de Ida" (ed. Companhia das Letras)

SÁBADO

Com meu irmão, vamos a Atlantic City jogar no cassino. Os bairros periféricos cheios de prédios escurecidos e incendiados; imagens de desastre bélico nas zonas pobres da cidade. Depois, os hotéis de luxo, o deque, os letreiros de neon acesos durante o dia. Perdemos na roleta tudo o que levamos, mas um de nós acha na carteira um cartão de crédito, apesar da promessa de deixar em casa. Entramos de novo, recuperamos o dinheiro e ganhamos alguns dólares.

De volta, pegamos um desvio errado e nos perdemos. Terminamos num povoado desconhecido, não se via ninguém na rua; no fim, um supermercado vazio, uma coreana ou chinesa passa aspirador nos grandes corredores iluminados. Não sabe onde fica Princeton, nem como pegar a rodovia. Rodamos por subúrbios escuros até que, por fim, ganhamos a "freeway" e chegamos a tempo de jantar no Blue Point.

DOMINGO

Faz uns meses, Alexander Kluge veio a Princeton para dar uma conferência, mas um pequeno acidente invernal o obrigou a cancelá-la. Não podia falar porque havia machucado o rosto e quebrado um braço. Kluge apareceu no salão, engessado, e se inclinou para cumprimentar com uma espécie de cortesia chinesa. E foi tudo.

Em suas narrativas sempre há um fato surpreendente ""um contratempo"" que altera a temporalidade e concentra sentidos múltiplos. Em alemão é "unerhörte Begebenheit", o sucesso surpreendente. O acontecimento inesperado está na origem da novela como forma. E o conto de média duração é o modelo da narrativa em Kluge. Em seus livros de contos "Biografias", "Novas Histórias", "Stalingrado" a vida breve dos protagonistas se entrevê na trama dos fatos históricos. Kluge trabalha como ninguém a diferença entre o sentido da experiência e o vazio impessoal da informação. A literatura como historiografia.

TERÇA

Passamos uns dias vendo ""com intervalos"" as nove horas do filme de Kluge sobre "O Capital" de Marx. Trata-se de um ensaio narrativo sobre as fantasmagorias do capital, sobre sua capacidade de criação de novas realidades. Por um lado, retoma a poesia corrosiva do "Manifesto Comunista" (a forma do manifesto como irrupção de uma nova visão crítica).

Por outro, renova a discussão sobre o conceito de fetichismo da mercadoria e analisa o caráter ilusório do real na sociedade capitalista. Ótima utilização dos letreiros, as frases escritas e os cartazes como imagens verbais, na linha do construtivismo russo.

Uma lição de pedagogia, política e arte didática em que convivem a montagem e os projetos de Eisenstein, o capítulo do catecismo de "Ulysses" de Joyce e os poemas de Brecht. Uma nova dramaturgia histórica na época da tecnologia avançada.

QUINTA

Depois de ver o filme de Kluge ela decidiu viajar para a Índia com duas amigas. Um trio não familiar. Vão buscar justamente a desfamiliarização absoluta.

Pensam em chegar a Nova Déli e depois passar um tempo num povoado ecológico e semideserto (só 1 milhão de habitantes), todos são vegetarianos, a medicina só usa produtos naturais, o plástico e o poliéster são proibidos.

Ela e suas amigas vão atrás da distância, a "ostranenie" (estranhamento), o efeito V. O mais provável, digo a ela, é que vocês se convertam em objeto de atenção. Também vamos por isso, disse ela.

SEGUNDA

Os estudantes do seminário me deram de presente um Kindle. Para que atualize seu modo de ler, professor, ironizam. Incluíram as obras completas de Rosa Luxemburgo e de Henry James. Passo várias horas estudando as múltiplas possibilidades do aparelho digital. Uma máquina de ler mais dinâmica que um livro (e mais fria).

Lemos igual, apesar da mudança? O que persiste nesta prática de larguíssima duração? Tendo a pensar que o modo de ler não variou, para além das mudanças no suporte "papiro, rolo, livro, tela", da posição do corpo, dos sistemas de iluminação e das mudanças na diagramação dos textos. Ler sempre foi ir de um signo para outro. O movimento, assim como a respiração, não variou. Lemos à mesma velocidade que nos tempos de Aristóteles.

Quando dizemos que uma imagem vale mais do que mil palavras, queremos dizer que a imagem vem mais rápido, a captação é instantânea, enquanto ler um texto de mil palavras, qualquer um, requer outro tempo, uma pausa.

A linguagem tem sua própria temporalidade; melhor dizendo, é a linguagem que define nossa experiência da temporalidade, não só porque a tematiza e a encarna na conjugação dos verbos, mas porque impõe seu próprio tempo. Para estar à altura da velocidade de circulação das novas tecnologias, seria preciso abandonar as palavras e passar a uma linguagem inventada, feita de números e anotações matemáticas.

Então sim, quem sabe estaríamos à altura das máquinas rápidas. Mas é impossível substituir a linguagem, todo esperanto é cômico. O sistema de abreviações taquigráficas do Twitter e das mensagens de texto acelera a escrita, mas não o tempo de leitura; é preciso repor as letras que faltam "e reconstruir uma triste sintaxe" para compreender o sentido.

SÁBADO

Vou até o bar do Lahiere's, que será definitivamente fechado em alguns dias. Scott Fitzgerald costumava ir lá. Peço um uísque com gelo, depois de quase um ano sem beber álcool.

SEGUNDA

Última aula. Fotos de grupo. Vou sentir falta dos alunos. Reunião na Palmer House, com colegas do departamento. Cumprimentos, lembranças, presentes, discursos.

QUARTA

Andrés di Tella veio ao Princeton Documentary Festival e aproveita para filmar enquanto desocupo o escritório, devolvo livros na biblioteca, tiro os quadros da parede, esvazio as gavetas, arquivo papéis. Ele é o meu "Big Brother" pessoal.

QUINTA

Jantamos com Arcadio, Alma Concepción e Sarah Hirschman no lendário ""para mim"" restaurante chinês do shopping, no final da Harrison Avenue. Levamos o vinho. Bebo demais, pois não gosto de despedidas.

SEXTA

Aeroporto Kennedy. Viagem para Buenos Aires. Mal chegamos à sala de embarque e ela se isola em seu iPod. Não suporta a exaltação dos argentinos que se amontoam por ali. Todos usam um tom desabusado e presunçoso, aprendido em anúncios de publicidade e no estilo de atuação dos atores argentinos. Na verdade, parecem policiais que tivessem estudado teatro com Alberto Ure (3), diz ela, enquanto estamos no finger, prestes a embarcar.

NOTAS DO TRADUTOR

1. Regionalismo portorriquenho, a palavra "bregar" tem múltiplos significados, conforme o contexto em que é usada. O livro de Arcadio Díaz discute esses significados.
2. Professor de espanhol em Princeton, o espanhol Antonio Calvo suicidou-se em abril, após ser demitido em consequência de denúncias feitas por seus alunos e colegas de departamento durante o processo de avaliação para renovação de seu contrato. No quinto excerto de seus diários, publicado na Ilustríssima de 22/5, Piglia denuncia o sistema de avaliação, atribuindo a morte do colega à intolerância cultural que haveria nas universidades americanas.
3. Alberto Ure: polêmico teatrólogo, conhecido por seu método que valoriza o estilo argentino de interpretação.


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