Folha de S. Paulo


Ex-combatente vietnamita busca reparação por danos do agente laranja

RESUMO Tran To Nga, vietnamita de 74 anos, lutou contra o domínio ocidental na Guerra do Vietnã. À época, foi repetidamente atingida pelo agente laranja. Hoje, nos tribunais franceses, busca reparação das grandes empresas que forneceram o desfolhante tóxico aos Estados Unidos. Filme e livro retraçam sua trajetória.

Jean-Paul Guilloteau/"L'Express"
Tran To Nga no início de 1968 na Frente Nacional de Liberação do Vietnã do Sul
Tran To Nga no início de 1968 na Frente Nacional de Liberação do Vietnã do Sul

Em plena Guerra do Vietnã, num dia de 1966, a jovem combatente vietcongue Tran To Nga, então com 24 anos, escrevia sob a luz do lampião em seu esconderijo no labirinto de túneis escavados na região de Cu Chi, nas cercanias de Saigon, quando escutou o ruído de um avião sobrevoando em baixa altitude.

Intrigada, saiu de seu abrigo subterrâneo para averiguar. Na superfície, vislumbrou uma nuvem branca saindo das entranhas de uma aeronave militar C-123, desenhando enormes manchas no azul do céu. De repente, uma chuva gosmenta começou a gotejar em seus ombros, grudando em sua pele e causando um acesso de tosse.

Sua mãe irrompeu aflita, implorando para que jogasse água no corpo e se desfizesse de suas vestes, ao mesmo tempo em que gritava: "É desfolhante! É o agente laranja, Nga!". Seria a primeira de inúmeras chuvas químicas a que seria exposta ao longo do conflito.

Tran To Nga é uma das mais de 3 milhões de vítimas estimadas dos bombardeios de herbicidas –entre 1961 e 1971, foram despejados no Vietnã pelas forças americanas cerca de 80 milhões de litros (60% dos quais correspondentes ao agente laranja).

O líquido era usado para destruir as colheitas e as espessas florestas nas quais os vietcongues se refugiavam em seu embate nas fileiras da Frente Nacional para a Liberação (FNL) contra as tropas governamentais e dos EUA.

O produto, de alto grau de toxicidade por causa do elevado teor da dioxina TCDD utilizado em sua fabricação na época por empresas químicas americanas, é considerado cancerígeno e causa diferentes patologias, transmitidas até hoje ao longo de gerações. Falamos de malformações congênitas e intoxicações variadas.

Tran To Nga, hoje com 74 anos, tornou-se a derradeira esperança de reparação às vítimas da arma química usada no conflito do Vietnã. Cidadã francesa desde 2002, ela entrou com uma ação judicial penal no Tribunal de Grande Instância de Évry, no subúrbio de Paris (perto de onde reside), contra 26 empresas americanas fornecedoras do agente laranja para o governo dos EUA durante a emblemática guerra no Sudeste Asiático.

Entre os réus do processo em andamento estão nomes conhecidos, como Dow Chemical e Monsanto. Seis audiências já foram realizadas, e a sétima está marcada para este ano, em um julgamento no qual as alegações finais de acusação e defesa ainda não têm data para acontecer.

ENVENENADA

Em meio aos trâmites do processo, Tran To Nga lançou em 2016 o livro autobiográfico "Ma Terre Empoisonnée" (minha terra envenenada, ed. Stock), um relato de sua agitada trajetória, desde o nascimento no delta do rio Mekong, em 1942, passando por seus combates no sangrento conflito, até as portas do tribunal na França.

Ironia da história, em maio do ano passado, o presidente Barack Obama anunciou, em visita oficial a Hanói, o fim do embargo de vendas de armas americanas ao Vietnã, em vigor há cerca de 50 anos.

No passado, na impossibilidade jurídica de responsabilizar o governo dos EUA, veteranos de guerra americanos (vítimas indiretas do agente laranja no Vietnã) já haviam recorrido aos tribunais de seu país contra 37 empresas americanas. Em 1984, em troca da sustação de todo e qualquer processo judicial, os fabricantes depositaram US$ 180 milhões em um fundo de compensação para os ex-militares atingidos pelo herbicida.

Associações de vietnamitas vítimas do agente laranja no conflito fizeram o mesmo, mas a Justiça americana, até a última instância na Suprema Corte, em 2009, rejeitou todas as ações e recursos.

Fernando Eichenberg/Folhapress
Tran To Nga no subúrbio de Paris em agosto de 2016
Tran To Nga no subúrbio de Paris em agosto de 2016

A legislação francesa permite a um cidadão do país que tenha sofrido dano extraterrorial cometido por um agressor estrangeiro recorrer à Justiça na França. Tran To Nga é hoje a única vítima viva conhecida que sofre de doenças causadas pelo agente laranja no Vietnã e que possui cidadania francesa.

No início, ela não queria abandonar seu pacato e anônimo cotidiano para enfrentar uma batalha nos tribunais. Mas acabou convencida por um militante da causa, o francês André Bouny, presidente do Comitê Internacional de Apoio às Vítimas Vietnamitas do Agente Laranja.

"Já tenho idade avançada, nunca pensei em fazer um processo contra quem quer que fosse. Quando me propuseram, recusei. Mas depois que me explicaram que sou a última chance jurídica para as vítimas afetadas pela dioxina –e não apenas vietnamitas, mas do mundo inteiro–, decidi aceitar", relata Tran To Nga, ao receber a Folha em sua casa nos arredores de Palaiseau, a sudoeste de Paris.

Em 2011, ela obteve a confirmação médica de que seu sangue registrava um índice de dioxina muito superior ao limite tolerado. Pelo menos quatro das enfermidades de que sofre figuram entre as 17 patologias relacionadas à exposição ao agente laranja na lista elaborada pelo Instituto de Medicina da Academia Nacional de Ciências de Washington, como a talassemia alfa e determinados tipos de diabetes e de tuberculose.

"Sofro de problemas cardíacos, sanguíneos, respiratórios, tenho nódulos por todo lado. Acabei de retirar dois tumores, um deles no seio. São todas doenças incuráveis ligadas à dioxina", conta.

DAVI X GOLIAS

À frente do processo acusatório –já comparado por alguns a um embate de Davi contra Golias pelo poderio financeiro das grandes empresas americanas e por sua capacidade de mobilizar um exército de advogados– está o especialista francês em direito penal William Bourdon, reconhecido por sua atuação em crimes contra a humanidade e fundador da associação Sherpa, de proteção aos direitos de cidadãos vítimas de crises econômicas.

Em 2009, um Tribunal Internacional de Opinião, sem alcance jurídico, composto de juízes de sete países (EUA, França, Índia, Romênia, Japão, Argélia e Chile), determinou a responsabilidade das empresas americanas e do governo de Washington pela utilização criminosa do agente laranja. Bourdon participou da audiência; na ocasião, viajou até o Vietnã a fim de colher elementos para o julgamento.

"É impressionante visitar o andar do hospital de Ho Chi Minh [ex-Saigon] reservado às crianças vítimas da dioxina. Tem-se a impressão de estar diante de um quadro de Bosch [pintor holandês do Renascimento conhecido por retratar personagens grotescos e fantásticos], tal a desfiguração e o sofrimento das crianças", diz o advogado, sentado à mesa de seu escritório em Paris.

Em sua autobiografia, Tran To Nga narra como, em 5 de janeiro de 1966, então instalada em Hanói, capital do norte comunista, lançou-se com duas centenas de vietcongues na saga da mítica Trilha Ho Chi Minh, rumo ao embate pela liberação do sul aliado dos EUA: quatro meses de marcha por quase 2.000 quilômetros de densas florestas e montanhas escarpadas, sob bombardeio constante.

Durante a guerra, atuou como redatora da agência de comunicação clandestina ou como agente espiã de ligação. Sua mãe, Nguyen Thi Tu, que presidia a União das Mulheres pela Liberação do Vietnã do Sul, morreu no conflito (o pai ela havia perdido aos cinco anos).

Em plena floresta, em 30 de junho de 1968, sua primeira filha, Viet Hai, nasceu com tetralogia de Fallot, uma cardiopatia congênita também citada entre as enfermidades ligadas ao agente laranja. O bebê não resistiu à doença e faleceu aos 17 meses de vida.

Tran To Nga teve ainda duas outras filhas: Viet Lien, nascida em 1971, também no meio da guerrilha, e Viet Hong, em dezembro de 1974, na prisão de Saigon. Detida em agosto de 1974, Nga foi interrogada e torturada grávida, e deixou sua cela, com o bebê nos braços, somente em 30 de abril de 1975, data da tomada de Saigon pelas forças comunistas e marco do fim da Guerra do Vietnã.

Tran To Nga sonhava com a paz e com a reunificação do país, mas no pós-guerra sofreu sob o "permanente clima de suspeição", a "vigilância revolucionária" e a "arrogância dos vitoriosos" com seus campos de reeducação. Sobre os novos dirigentes, escreveu: "Eles me traíram, eles nos traíram a todos". Hoje, diz não se arrepender de suas lutas no front, dedicadas não a "um ideal, ao comunismo ou a alguma ideologia", mas à independência de seu país.

A tragédia pessoal de Nga, seu embate na Justiça francesa e os efeitos nocivos da dioxina do agente laranja são também tema de um documentário em produção, com direção de Alan Adelson e Kate Taverna. O filme é produzido pela Fork Films, de Nova York, especializada em direitos humanos e justiça social, com ênfase nas lutas de mulheres pelo mundo.

Independentemente do veredicto futuro, Nga já sabe o que fará: voltará a viver no Vietnã. Em caso de vitória no tribunal e de indenização financeira, adianta que utilizará o dinheiro para construir escolas de formação profissional para crianças deficientes vítimas do agente laranja no Vietnã. "Para reconhecer um erro, é preciso ter coragem. Não peço que a Dow Chemical, a Monsanto e todas as demais empresas se desculpem. Mas que tenham a coragem de admitir o mal que cometeram. Assim, é possível ajudar a repará-lo."

FERNANDO EICHENBERG é jornalista em Paris e autor de "Entre Aspas: Vol. 2" (L&PM).


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